Não sei como, nem por que, mas tudo estava úmido,
gelado, girando; transformando meu corpo em um pedaço frio de carne, que logo
serviria de comida para outros seres menores. Eu enxergava nada, o sol não
existia, e o liquido gelado impedia que eu abrisse meus olhos. Eu não entendia
o que estava acontecendo.
Meu pulmão clamava por ar, mas eu não podia
respirar. Esta era minha única certeza, se eu respirasse eu morreria. O que eu
deveria fazer? Esperar o abraço da morte ou lutar mais um pouco?
Não recordo-me de nada anterior a isto. Por que
minha mente despertou apenas neste momento? Por que tudo está assim?
Tentei deixar meu corpo imóvel. Impossível. O
liquido me arrastava em certa direção. Liquido. Correnteza. O que havia
acontecido?
Estabilizei meu corpo na horizontal, no sentido do
fluxo, e senti a gravidade me puxando, senti braços me agarrando e vozes
sussurrando “Venha. Livre-se deste peso inútil que é a carne. Venha com a
gente. Entregue-se à água.”
Não! Eu não podia me entregar. Estiquei meus
braços para cima e com ajuda das pernas nadei rumo ao que eu achava ser a
superfície. Eu estava certo.
Coloquei a cabeça para fora da água e inspirei o
máximo de ar que eu conseguia, permanecendo ofegante enquanto tentava me manter
com a cabeça fora d’água.
A correnteza era fortíssima, e o nível de água
colossal. Eu ainda estava na cidade, mas a cidade não estava mais lá. Os
prédios estavam submersos, com apenas alguns terraços sobre a água, pássaros
voavam no mesmo sentido da correnteza e pedaços de material flutuante passavam
rapidamente por mim.
Olhei para todos os lados e não conseguia
encontrar o fim da água. O que quer que tenha acontecido foi realmente grande.
- Avis!
Aquela voz, longe fraca, mas conhecida, causou-me
um arrepio e, com isso, vários flashes de memória surgiram em minha cabeça.
Amigos. Reunião. Festa. Prédio. Comemoração. Novo
membro. Bebida. Diversão. Doses. Barulho. Explosão. Janela. Onda. Parede.
Rachadura. Impacto. Busca por ar. Preto.
- Ursus! – Gritei. Mas nada recebi de resposta. –
Ursus! Piscis! Simiu! Cattus! Aranea! Taurus! Fiber! Vulpis! Linx!
- Aqui. Avis, eu estou aqui!
- Simiu! Onde? – Engoli um pouco de água.
- Aqui!
Girei minha cabeça pra todos os lados, buscando a
origem da voz não a encontrei. Continuamos gritando enquanto éramos arrastados
pela água até que Simiu conseguiu levantar o braço, mostrando-me sua
localização. Nós tentamos nos aproximar, mas a correnteza era mais forte que nossas
braçadas, tornando a aproximação uma tarefa difícil e perigosa, devido à
velocidade com que pedaços de matéria sólida se aproximavam de nós.
O tempo passou e nossa proximidade não sofreu
grande transformação, mas continuamos tentando, até sermos surpreendidos por uma
explosão, que rasgou o céu como se fosse um trovão. Nós paramos de tentar nos
aproximar e olhamos para cima, buscando alguma coisa incomum.
O céu passou de azul claro para lilás e as nuvens
começaram a se agrupar no horizonte, formando uma perfeita circunferência. Outra
explosão. As nuvens se aproximavam rapidamente, e era possível sentir a água
perdendo velocidade cada vez que eu me aproximava das nuvens. Olhei para o lado
em busca de Simiu e nada encontrei. Eu estava sozinho novamente.
A circunferência se aproximou ao máximo e assim
que a cruzei, tudo que estava em meu campo de visão sumiu em meio ao ar, dando
vida a um som de queda d’água.
Olhei para frente com mais atenção e observei a
cascata que me aguardava. Eu não conseguiria lutar contra tal força, deixando
meu corpo ser levado enquanto olhava para o lugar onde eu estava, assim que a
queda d’água teve início.
O lugar era cercado por uma cadeia de morros,
tendo apenas duas falhas. De um lado um vasto oceano podia ser visto e do
outro, uma vasta floresta tomava conta da terra, mas não era perfeita, podendo
ser visto pequenas casas e uma cidade mais a longe.
Barcos pesqueiros, captureiros, e cargueiros
estavam se movimentando pelo lago que ali se formava. Coletando peixe,
capturando aves e transportando veículos automotivos.
A queda era longa, e eu certamente morreria caso
me chocasse com a água. Eu não sabia onde estava, não sabia como havia chegado
ali, e não sabia se meus amigos estavam vivos ou mortos. Eu não poderia ficar
arriscando, mas agora seria necessário. Fechei meus olhos e me concentrei. Meu
corpo inteiro tremeu e formigou por completo. Um brilho vivo foi emanado e uma
forte sensação de calor tomou conta de mim. Abri meus olhos, estiquei minhas
asas e voei rumo às ilhas que ficavam no meio daquele lugar.
~~X~~
As ilhas possuíam pequenas casas de madeira,
provavelmente de pescadores, com varais de roupas espalhados entre as árvores e
crianças correndo pelo terreno.
Fiquei planando pelo lugar, buscando alguma dica
de onde eu estava e onde meus amigos poderiam estar. Fechei meus olhos e enviei
pensamentos a eles. Eu não poderia conversar nesta forma, mas eles poderiam
ouvir os pensamentos que eu permitisse.
- Onde vocês estão? Vocês passaram pelo portal de
nuvens?
- Sim, foi tenso, tive que me transformar pra não
morrer. – Disse Piscis. – Do nada tudo sumiu e uma cachoeira apareceu em minha
frente, obrigando-me e me transformar em um Glaucus
Atlanticus. Certo que eu morreria com
a queda.
- Então tu estás dentro d’água. – Afirmei. – Cuida
com os barcos, vou ver se consigo arrumar uma rota de fuga.
- Sim, pode deixar, e tu também. Eles caçam
pássaros aqui.
- Já vi.
- Avis! Piscis! Onde vocês estão? - Gritou Arenea.
- Voando. – Respondi.
- Nadando. – Disse Piscis.
- Onde Avis? Eu estou no topo de uma árvore no
meio da ilha e não estou te vendo.
- Eu sou um Cisne branco, não tem como não me ver.
- Mas não estou te vendo.
- Eu também não estou te vendo. – Comentou Taurus.
– Pra mim e água se transformou em um pasto, e eu rolei pela grama, estou todo
lanhado. Estou em forma humana ainda, olhando para o céu, mas não estou te
vendo.
- Como é o lugar que vocês estão? – Perguntei.
Enquanto os três me descreviam o lugar e os outros
membros do grupo foram surgindo na conversa. Todos descreveram como haviam
chegado ao lugar, caindo de uma cachoeira, caindo do céu, ou se esborrachando
com a terra. Descrevendo também o mesmo lugar, os mesmos barcos, mesmas casas,
mesmas formações de pedra, mas nenhum conseguia enxergar os outros.
- Isto não é bom. Por que não conseguimos enxergar
os outros? – Perguntou Vulpis.
- Talvez tenhamos que tentar voltar sozinhos para
casa. Um teste, ou uma divisão por dimensões. Sei lá. – Argumentou Lynx.
- Teste de quem? Digo, não somos subordinados a
ninguém, temos que provar nada a ninguém. – Disse Fiber.
- Calem a boca. Tá resolvido, vamos voltar para
casa. Cada um por si. Assim a gente testa cada um do grupo. – Argumentou Ursus.
– Vocês sabem que ninguém aqui tem poder pra isso, e nem vontade de destruir
uma cidade. Alguém realmente poderoso está por trás disso. A gente se encontra
em casa. - Todos assentiram e tomaram seu próprio rumo.
Eu permaneci planando por mais um curto período de
tempo, olhando para a floresta e tentando me localizar pelo sol. Minha casa
ficava na mesma direção que a floresta, a não ser que eu estivesse mais ao sul,
mas pela inclinação do sol não acho que isto fosse possível.
Inclinei meu corpo para frente, voando rumo à
floresta, e o mundo me pregou mais uma de suas peças. Uma corrente de ar frio
passou pelo meu corpo, fazendo-me despencar ao encontro do chão. Abri minhas
asas, estabilizei meu corpo e dei um rasante no solo, encostando de leve no
limite da ilha com a água.
Eu estava voando baixo de mais, mas não conseguiria
voar alto o suficiente antes de chegar perto dos barcos, obrigando-me a
enfrentá-los. Os barcos pesqueiros foram os mais fáceis, afinal, podiam fazer
nada, mas meu problema seriam os captureiros. Eles eram barcos grandes e
possuíam um enorme mastro em seu meio, tendo em sua ponta, uma rede de fios
verticais que voam a favor do vento, fazendo com que as aves se chocassem com os
fios e se prendessem neles, impedindo-as de continuar o voo e caindo rumo à mão
dos tripulantes.
Os fios, uma vez ou outra encontravam minhas asas,
mas eu conseguia me livrar deles com extrema facilidade, afinal, eu era um
humano no corpo de um cisne. Mas meus problemas não pararam por aí. Um dos
tripulantes, notando minhas peripécias, retirou uma espingarda de um baú,
apontando-a para mim. Ele mirou e assim que posicionou o dedo para puxar o
gatilho outro tripulante bateu em seu braço, desestabilizando a arma e fazendo
a bala passar longe de mim, mas, mesmo assim, fazendo meu coração disparar.
Ele deu uma bronca no atirador enquanto apontava
pra mim e para o lugar em volta, provavelmente, dizendo que eu não pertencia aquele
lugar.
Voltei minha atenção para o caminho à frente e,
assim que meus olhos encontraram foco, eu me choquei com a lateria de um navio
cargueiro, emitindo um alto grunhido antes de atingir a água. Levantei meu
enorme pescoço de dentro d’água e encarei a lateria. Meu corpo doía, mas não o
suficiente para me impedir de voltar a voar.
O cargueiro movia-se lentamente pela água, e eu
teria de dar uma imensa volta para contornar o barco, fazendo-me optar por
esperar pacientemente ele sair da minha frente para que eu pudesse adentrar na
área governada pela floresta.
~X~
O sol estava adquirindo tons alaranjados,
anunciando o fim do reinado do sol e o inicio da dinastia lunar. Os pássaros
começavam e buscar o abrigo de uma dríade e os animais terrestres começavam a
reunir o bando, festejando a carne adquirida ao longo do dia.
Eu voei por um longo tempo após me chocar com o
navio cargueiro, passando por caçadores, árvores e animais que eu nunca
imaginei que pudessem existir. Registrando, uma vez ou outra, aves para meu
arsenal de transformações. Mas minha vida não passava por um momento alegre.
Devido ao grande esforço causado pela viagem, e a falta de costume de voar longas
distâncias enquanto transformado, meu peitoral e asas doíam constantemente,
obrigando-me a fazer uma parada, mesmo que eu não pudesse ou quisesse.
Eu ainda não sabia onde estava, e fazer uma pausa
em uma situação como a que eu me encontrava não era uma boa ideia. Minha mente
estava igualmente cansada, mas eu não poderia parar, não no meio da floresta.
Fechei um pouco meus olhos para tentar relaxar e um
forte brilho se fez presente no meu lado esquerdo, chamando minha atenção. O
brilho de uma torre inundou meus olhos, despertando-os para um pequeno vilarejo
guardado pela floresta. Não entendo como não o vi antes, mas, sem pensar nas consequências
que este ato poderia me trazer, inclinei meu corpo e voei rumo a ele, torcendo
para haver um lugar decente para eu poder dormir.
As casas eram enormes e as ruas asfaltadas. As
luzes eram amenas, emitindo pouco brilho, permitindo aos moradores, olharem as
estrelas. Aquilo parecia mais um recanto do que um vilarejo. Um lugar para
fugir dos problemas da cidade.
Todos os estabelecimentos estavam fechados e eu
não aguentaria voar por mais tempo, obrigando-me parar em cima de um muro que
cercava uma grande casa amarela.
Caminhei sobre o muro, posicionei-me atrás de uma
árvore, aconcheguei minhas asas ao corpo e dormi sobre forma de ave, torcendo
para que ninguém me quisesse no jantar.
~X~
Latidos ecoaram pelos meus ouvidos e um leve
murmúrio se fez presente, despertando-me de meu profundo sono. Abri meus olhos
de forma lenta e bocejei, abrindo bem o bico. Mirei o lugar de onde estavam
vindo as vozes e me assustei, farfalhando as asas.
Um cachorro enorme latia ferozmente em minha
direção, mesmo preso do outro lado do pátio e seis pessoas me encaravam, sendo
dois adolescentes, dois adultos e dois idosos. Eles me olhavam com certo ar de
contemplação, menos os idosos, que me olhavam com certa preocupação.
- Acho que eu nunca tinha visto um cisne. – Disse
o garoto.
- É porque eles não deveriam estar aqui nesta
região. – Argumentou a garota, retirando uma mochila de suas costas.
- “Acho que escolhi a ave errada.” – Pensei.
- O que te trás aqui? – Perguntou o senhor.
- Como assim papai? É uma ave selvagem, não vai te
entender. – Disse o adulto.
- Cale a boca. – Ordenou o senhor, erguendo uma de
suas mãos. – Me diga, o que te trás aqui? – Inclinei minha cabeça para a
esquerda.
- Não precisa ter medo. – Disse a senhora.
- Acho que vocês estão ficando loucos. – Falou a
mulher.
Levantei uma de minhas asas e apontei para a
cachorro que continuava a latir.
- Não precisa se preocupar. Vamos, nós queremos te
ajudar, te darei roupas e comida.
- Papai, o que o senhor andou tomando?
- Nada meu filho incompetente. – Resmungou o velho.
– Você nunca acreditou em mim, agora está aí a prova. Ele não vai ir muito
longe, não do jeito que está. Ele não tem escolha. Ou fica e nós o ajudamos ou
ele corre o risco de morrer de exaustão no meio do caminho. – Olhou para mim.
- Papai...
Antes que o adulto pudesse terminar a frase eu
pulei do muro, que era mais alto que os homens, e abri minhas asas antes de
chegar ao chão, evitando acidentes. Fechei meus olhos e a sensação de
formigamento teve inicio. O calor tomou conta de mim, junto com uma forte
coceira em cada ponto onde havia penas, e meu corpo começou a brilhar, abandonando
a silhueta de cisne e dando forma a uma silhueta de homem. O brilho tornou-se
mais fraco e eu emergi da fraca luz. Um homem novo, pálido, de olhos verdes e
cabelos castanhos, levemente longos; com o peito e os braços marcados devido a extensa
viagem em forma de cisne; completamente nu.
A mulher adulta tapou o rosto e os dois adolescentes
arregalaram os olhos, mantendo-os focados em mim, provavelmente pelo choque da
transformação, deixando-me, de certa forma, constrangido. A senhora, que dera
as costas para mim assim que eu desci do muro, voltou ao local onde estávamos, entregando-me uma toalha azul bebe, que utilizei rapidamente para me cobrir.
- Como assim? – Disse lentamente o garoto.
- Desculpe pelos meus netos, eles nunca
acreditaram nessas coisas.
- Sem... – Minha voz falhou. – Sem problemas. –
Sorri.
- Venha, vamos comer. – Disse ele me pegando pelo
pulso e me fazendo entrar na grande casa.
- Com licença. – Cochichei, olhando para a
decoração extremamente cara que eles mantinham na casa.
Nós caminhamos pelo corredor principal e entramos
na única porta a esquerda, adentrando em uma enorme cozinha onde uma secretária
trabalhava de forma rápida sobre o fogão.
- Sente-se. - Disse o senhor, apontando uma das
cadeiras ao redor da mesa.
Assim que me sentei, a secretária colocou um copo
de leite em minha frente e uma bandeja com cookies e frutas, despertando ainda
mais minha vontade de comer.
- Preciso perguntar. Como você fez aquilo? Digo,
se transformar? – Perguntou o Adolescente. – Ah, eu sou Brendan.
- Deixem-no comer primeiro. – Disse o senhor. – Me
chamo Elm.
- Tudo bem. – Disse, limpando a boca com um
guardanapo. – Podem me chamar de Avis. – Solucei. – Eu sou um guardião, por
isso posso me transformar.
- Jasmine. – Disse a garota, levantando a mão
direita. - Pode fazer mais coisas? – Perguntou com certo brilho no olhar.
- Posso, mas não neste estado. Digo, seria
imprudente.
- Eu estou
chocada. – Disse a mulher.
- Brendam, pegue uma roupa para ele, ele não pode
ir embora só de toalha.
- Não precisa. – Contradisse. – Eu vou voando para
casa, tu só vai perder roupa.
- Não. – Disse Elm meio bravo. – Há alguns anos
uma vidente me disse que isto aconteceria e disse-me para ajudá-lo. Eu vou
emprestar um dos nossos carros e um GPS, assim você se poupa e termina o que
tens de fazer.
- Eu não posso aceitar isso.
- Mas vai. – Afirmou Elm com um soco na mesa.
O silêncio se fez presente na mesa e Brendam saiu
da cozinha, voltando logo em seguida com uma calça, camiseta, cueca, meia e
tênis parar mim.
- Espero que sirva. – Disse Brendam.
- Avis, pode ficar com meu carro, é o preto que está
parado lá na frente. Nós não teremos dificuldade de comprar outro. – Disse Elm,
me passando a chave do carro.
- Papai, o senhor não acha que...
Antes do homem terminar sua frase os latidos do
cachorro voltaram a se fazer presente, fazendo todos do recinto ficarem em
silêncio. Eu olhei para todos, pensando em quão boas aquelas pessoas estavam
sendo, quando uma voz surgiu dentro de minha cabeça.
- “Estou ferrado.”
Levantei de forma brusca da mesa, já vestido, e
corri até o lugar onde antes eu estava, encontrando o cachorro latindo
ferozmente para um macaco sobre o muro. A família toda correu atrás de mim e em
poucos segundos eles já estavam parados perto da porta, observando o pequeno
filhote de gorila parado sobre o muro.
- Simiu! – Falei alto, me aproximando dele.
- “Ainda bem, achei que ia morrer tentando voltar
pra casa.” - Aproximei-me o máximo que consegui e Simiu pulou em meus braços,
ficando de barriga para cima, como se fosse um bebe. – “Eu não vou me
transformar de volta em humano. Se eu fizer isso, vai demorar um bom tempo pra
eu voltar a poder virar macaco.”
- Sem problemas, estas pessoas estão me ajudando,
ajudarão você também.
- Ele também é como você? - Perguntou Jasmine.
- Sim, mas ele está muito cansado pra virar
humano. As transformações cansam muito, e ele, provavelmente, está caminhando
desde ontem. Eu tive uma noite de sono, mas a distância que ele percorreu foi
igual a minha, e, por terra, é bem mais complicada.
- Tudo bem, vamos alimentar ele assim mesmo. –
Disse Elm.
Nós perdemos algumas horas do dia com eles me
conhecendo mais e eu conhecendo mais eles, enquanto eu alimentava Simiu como se
fosse meu bebe.
O dia passou e o reinado do Sol começava a ter seu
fim. Assim como nossa estadia na casa dessas pessoas que nos acolheram tão bem.
- Espero que vocês nos visitem algum dia. – Disse
Elm, me ajudando a colocar o adormecido Simiu no banco de trás do carro.
- Visitaremos. Vocês foram muito gentis conosco. Teremos
de retribuir algum dia.
- Antes de vocês partirem, eu queria lhe dar uma
coisa. Pode ir lá dentro comigo?
- Claro.
Fechei a porta de trás com Simiu lá dentro e
caminhei com Elm até a cozinha da casa. Lá ele abriu um armário chaveado e
retirou uma caixinha, entalhada com runas, pegando, de dentro dela, uma
corrente com um pingente em forma de ampulheta.
- Isto vai ajudar vocês. Não sei como, mas vai. Eu
sinto a magia dele, eu só não sei como usar, espero que você consiga.
Ele não estava errado. Mesmo sem tocar no pingente
eu sentia o poder que ele carregava, mas nem mesmo eu conseguiria decifrar
rapidamente sua função.
- Obrigado Elm. – Disse, colocando o pingente no
pescoço. – Você é muito bondoso, obrigado. - Elm sorriu e nós voltamos para o
carro, conversando sobre as peças que a vida pregava.
A rua, que antes estava vazia, possuía mais um
carro, igualmente preto, parado atrás do veículo que Elm me dera. Eu pouco
liguei, até caminhar rumo o automóvel e olhar para dentro dele, pelo vidro
traseiro, notando que Simiu não estava mais lá. A porta estava entreaberta e as
rodas furadas. O pânico tomou conta de mim.
Eu olhei para os lados e notei a preocupação nos
olhos de Elm também. Aquele carro, atrás do nosso, ele tinha que estar lá. Os
familiares de Elm apareceram no portão e ele os informou do acontecido. Eu
caminhei até o carro de trás e olhei pelo vidro traseiro. Ele estava ali. Simiu
estava ali.
Tentei abrir a porta, mas não adiantou, ela estava
trancada. O motorista, careca, com óculos escuros e terno, olhava para frente
com um ar sério, como se eu não estivesse ali. Fiquei com raiva de tudo e
golpeei o vidro. Nada. O motorista riu. O carro era blindado.
Dei um passo para trás, tomei fôlego,
concentrei-me em meu punho e golpeei o vidro mais uma vez, que explodiu em
vários pedaços e, de relance, pude ver a cara de pavor do motorista. Peguei
Simiu e abracei-o contra o peito, correndo para longe do carro.
O motorista desceu do veículo e correu atrás de
mim, o mais rápido que podia. Eu não tinha para onde ir. O carro estava
inutilizado e a família de Elm estava paralisada com a situação. Eu não tinha
outra opção.
Respirei fundo, abri os olhos já transformados e
fiz uma coisa que nem eu achei que conseguiria. Soltei Simiu no meio da
transformação e antes dele chegar ao chão agarrei-o com minhas garras, sem
machucá-lo, disparando rumo ao céu em forma de uma Harpia, com mais de dois
metros de altura. Simiu acordou no meio da subida e eu o tranquilizei,
mentalizando o que havia acontecido. Estabilizei meu corpo com certa
dificuldade e coloquei Simiu em minhas costas, planando de volta para a floresta
e procurando a corrente de ar quente que levaria a mim e Simiu para casa.