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Sonhos e pesadelos - De tijolo a castelo

Como poderia alguém se importar com um ser como este?
Como poderia crer que dará certo com um ser como este?
Onde está sua esperança e força de vontade para um futuro melhor?
Saia de perto dele, não há nada a ganhar, se afaste de um ser como ele.

Eu não me importo
Podemos passar fome
Podemos sofrer com o frio
Termos que roubar
E tomar banho no rio

Podemos ir a falência
Cair no buraco mais fundo
E perder a sapiência

Mas não importa, não há um critério
Pois, com um ser como este
Construiremos um império

Transformatur in

Não sei como, nem por que, mas tudo estava úmido, gelado, girando; transformando meu corpo em um pedaço frio de carne, que logo serviria de comida para outros seres menores. Eu enxergava nada, o sol não existia, e o liquido gelado impedia que eu abrisse meus olhos. Eu não entendia o que estava acontecendo.
Meu pulmão clamava por ar, mas eu não podia respirar. Esta era minha única certeza, se eu respirasse eu morreria. O que eu deveria fazer? Esperar o abraço da morte ou lutar mais um pouco?
Não recordo-me de nada anterior a isto. Por que minha mente despertou apenas neste momento? Por que tudo está assim?
Tentei deixar meu corpo imóvel. Impossível. O liquido me arrastava em certa direção. Liquido. Correnteza. O que havia acontecido?
Estabilizei meu corpo na horizontal, no sentido do fluxo, e senti a gravidade me puxando, senti braços me agarrando e vozes sussurrando “Venha. Livre-se deste peso inútil que é a carne. Venha com a gente. Entregue-se à água.”
Não! Eu não podia me entregar. Estiquei meus braços para cima e com ajuda das pernas nadei rumo ao que eu achava ser a superfície. Eu estava certo.
Coloquei a cabeça para fora da água e inspirei o máximo de ar que eu conseguia, permanecendo ofegante enquanto tentava me manter com a cabeça fora d’água.
A correnteza era fortíssima, e o nível de água colossal. Eu ainda estava na cidade, mas a cidade não estava mais lá. Os prédios estavam submersos, com apenas alguns terraços sobre a água, pássaros voavam no mesmo sentido da correnteza e pedaços de material flutuante passavam rapidamente por mim.
Olhei para todos os lados e não conseguia encontrar o fim da água. O que quer que tenha acontecido foi realmente grande.
- Avis!
Aquela voz, longe fraca, mas conhecida, causou-me um arrepio e, com isso, vários flashes de memória surgiram em minha cabeça.
Amigos. Reunião. Festa. Prédio. Comemoração. Novo membro. Bebida. Diversão. Doses. Barulho. Explosão. Janela. Onda. Parede. Rachadura. Impacto. Busca por ar. Preto.
- Ursus! – Gritei. Mas nada recebi de resposta. – Ursus! Piscis! Simiu! Cattus! Aranea! Taurus! Fiber! Vulpis! Linx!
- Aqui. Avis, eu estou aqui!
- Simiu! Onde? – Engoli um pouco de água.
- Aqui!
Girei minha cabeça pra todos os lados, buscando a origem da voz não a encontrei. Continuamos gritando enquanto éramos arrastados pela água até que Simiu conseguiu levantar o braço, mostrando-me sua localização. Nós tentamos nos aproximar, mas a correnteza era mais forte que nossas braçadas, tornando a aproximação uma tarefa difícil e perigosa, devido à velocidade com que pedaços de matéria sólida se aproximavam de nós.
O tempo passou e nossa proximidade não sofreu grande transformação, mas continuamos tentando, até sermos surpreendidos por uma explosão, que rasgou o céu como se fosse um trovão. Nós paramos de tentar nos aproximar e olhamos para cima, buscando alguma coisa incomum.
O céu passou de azul claro para lilás e as nuvens começaram a se agrupar no horizonte, formando uma perfeita circunferência. Outra explosão. As nuvens se aproximavam rapidamente, e era possível sentir a água perdendo velocidade cada vez que eu me aproximava das nuvens. Olhei para o lado em busca de Simiu e nada encontrei. Eu estava sozinho novamente.
A circunferência se aproximou ao máximo e assim que a cruzei, tudo que estava em meu campo de visão sumiu em meio ao ar, dando vida a um som de queda d’água.
Olhei para frente com mais atenção e observei a cascata que me aguardava. Eu não conseguiria lutar contra tal força, deixando meu corpo ser levado enquanto olhava para o lugar onde eu estava, assim que a queda d’água teve início.
O lugar era cercado por uma cadeia de morros, tendo apenas duas falhas. De um lado um vasto oceano podia ser visto e do outro, uma vasta floresta tomava conta da terra, mas não era perfeita, podendo ser visto pequenas casas e uma cidade mais a longe.
Barcos pesqueiros, captureiros, e cargueiros estavam se movimentando pelo lago que ali se formava. Coletando peixe, capturando aves e transportando veículos automotivos.
A queda era longa, e eu certamente morreria caso me chocasse com a água. Eu não sabia onde estava, não sabia como havia chegado ali, e não sabia se meus amigos estavam vivos ou mortos. Eu não poderia ficar arriscando, mas agora seria necessário. Fechei meus olhos e me concentrei. Meu corpo inteiro tremeu e formigou por completo. Um brilho vivo foi emanado e uma forte sensação de calor tomou conta de mim. Abri meus olhos, estiquei minhas asas e voei rumo às ilhas que ficavam no meio daquele lugar.
~~X~~
As ilhas possuíam pequenas casas de madeira, provavelmente de pescadores, com varais de roupas espalhados entre as árvores e crianças correndo pelo terreno.
Fiquei planando pelo lugar, buscando alguma dica de onde eu estava e onde meus amigos poderiam estar. Fechei meus olhos e enviei pensamentos a eles. Eu não poderia conversar nesta forma, mas eles poderiam ouvir os pensamentos que eu permitisse.
- Onde vocês estão? Vocês passaram pelo portal de nuvens?
- Sim, foi tenso, tive que me transformar pra não morrer. – Disse Piscis. – Do nada tudo sumiu e uma cachoeira apareceu em minha frente, obrigando-me e me transformar em um Glaucus Atlanticus. Certo que eu morreria com a queda.
- Então tu estás dentro d’água. – Afirmei. – Cuida com os barcos, vou ver se consigo arrumar uma rota de fuga.
- Sim, pode deixar, e tu também. Eles caçam pássaros aqui.
- Já vi.
- Avis! Piscis! Onde vocês estão? - Gritou Arenea.
- Voando. – Respondi.
- Nadando. – Disse Piscis.
- Onde Avis? Eu estou no topo de uma árvore no meio da ilha e não estou te vendo.
- Eu sou um Cisne branco, não tem como não me ver.
- Mas não estou te vendo.
- Eu também não estou te vendo. – Comentou Taurus. – Pra mim e água se transformou em um pasto, e eu rolei pela grama, estou todo lanhado. Estou em forma humana ainda, olhando para o céu, mas não estou te vendo.
- Como é o lugar que vocês estão? – Perguntei.
Enquanto os três me descreviam o lugar e os outros membros do grupo foram surgindo na conversa. Todos descreveram como haviam chegado ao lugar, caindo de uma cachoeira, caindo do céu, ou se esborrachando com a terra. Descrevendo também o mesmo lugar, os mesmos barcos, mesmas casas, mesmas formações de pedra, mas nenhum conseguia enxergar os outros.
- Isto não é bom. Por que não conseguimos enxergar os outros? – Perguntou Vulpis.
- Talvez tenhamos que tentar voltar sozinhos para casa. Um teste, ou uma divisão por dimensões. Sei lá. – Argumentou Lynx.
- Teste de quem? Digo, não somos subordinados a ninguém, temos que provar nada a ninguém. – Disse Fiber.
- Calem a boca. Tá resolvido, vamos voltar para casa. Cada um por si. Assim a gente testa cada um do grupo. – Argumentou Ursus. – Vocês sabem que ninguém aqui tem poder pra isso, e nem vontade de destruir uma cidade. Alguém realmente poderoso está por trás disso. A gente se encontra em casa. - Todos assentiram e tomaram seu próprio rumo.
Eu permaneci planando por mais um curto período de tempo, olhando para a floresta e tentando me localizar pelo sol. Minha casa ficava na mesma direção que a floresta, a não ser que eu estivesse mais ao sul, mas pela inclinação do sol não acho que isto fosse possível.
Inclinei meu corpo para frente, voando rumo à floresta, e o mundo me pregou mais uma de suas peças. Uma corrente de ar frio passou pelo meu corpo, fazendo-me despencar ao encontro do chão. Abri minhas asas, estabilizei meu corpo e dei um rasante no solo, encostando de leve no limite da ilha com a água.
Eu estava voando baixo de mais, mas não conseguiria voar alto o suficiente antes de chegar perto dos barcos, obrigando-me a enfrentá-los. Os barcos pesqueiros foram os mais fáceis, afinal, podiam fazer nada, mas meu problema seriam os captureiros. Eles eram barcos grandes e possuíam um enorme mastro em seu meio, tendo em sua ponta, uma rede de fios verticais que voam a favor do vento, fazendo com que as aves se chocassem com os fios e se prendessem neles, impedindo-as de continuar o voo e caindo rumo à mão dos tripulantes.
Os fios, uma vez ou outra encontravam minhas asas, mas eu conseguia me livrar deles com extrema facilidade, afinal, eu era um humano no corpo de um cisne. Mas meus problemas não pararam por aí. Um dos tripulantes, notando minhas peripécias, retirou uma espingarda de um baú, apontando-a para mim. Ele mirou e assim que posicionou o dedo para puxar o gatilho outro tripulante bateu em seu braço, desestabilizando a arma e fazendo a bala passar longe de mim, mas, mesmo assim, fazendo meu coração disparar.
Ele deu uma bronca no atirador enquanto apontava pra mim e para o lugar em volta, provavelmente, dizendo que eu não pertencia aquele lugar.
Voltei minha atenção para o caminho à frente e, assim que meus olhos encontraram foco, eu me choquei com a lateria de um navio cargueiro, emitindo um alto grunhido antes de atingir a água. Levantei meu enorme pescoço de dentro d’água e encarei a lateria. Meu corpo doía, mas não o suficiente para me impedir de voltar a voar.
O cargueiro movia-se lentamente pela água, e eu teria de dar uma imensa volta para contornar o barco, fazendo-me optar por esperar pacientemente ele sair da minha frente para que eu pudesse adentrar na área governada pela floresta.
~X~
O sol estava adquirindo tons alaranjados, anunciando o fim do reinado do sol e o inicio da dinastia lunar. Os pássaros começavam e buscar o abrigo de uma dríade e os animais terrestres começavam a reunir o bando, festejando a carne adquirida ao longo do dia.
Eu voei por um longo tempo após me chocar com o navio cargueiro, passando por caçadores, árvores e animais que eu nunca imaginei que pudessem existir. Registrando, uma vez ou outra, aves para meu arsenal de transformações. Mas minha vida não passava por um momento alegre. Devido ao grande esforço causado pela viagem, e a falta de costume de voar longas distâncias enquanto transformado, meu peitoral e asas doíam constantemente, obrigando-me a fazer uma parada, mesmo que eu não pudesse ou quisesse.
Eu ainda não sabia onde estava, e fazer uma pausa em uma situação como a que eu me encontrava não era uma boa ideia. Minha mente estava igualmente cansada, mas eu não poderia parar, não no meio da floresta.
Fechei um pouco meus olhos para tentar relaxar e um forte brilho se fez presente no meu lado esquerdo, chamando minha atenção. O brilho de uma torre inundou meus olhos, despertando-os para um pequeno vilarejo guardado pela floresta. Não entendo como não o vi antes, mas, sem pensar nas consequências que este ato poderia me trazer, inclinei meu corpo e voei rumo a ele, torcendo para haver um lugar decente para eu poder dormir.
As casas eram enormes e as ruas asfaltadas. As luzes eram amenas, emitindo pouco brilho, permitindo aos moradores, olharem as estrelas. Aquilo parecia mais um recanto do que um vilarejo. Um lugar para fugir dos problemas da cidade.
Todos os estabelecimentos estavam fechados e eu não aguentaria voar por mais tempo, obrigando-me parar em cima de um muro que cercava uma grande casa amarela.
Caminhei sobre o muro, posicionei-me atrás de uma árvore, aconcheguei minhas asas ao corpo e dormi sobre forma de ave, torcendo para que ninguém me quisesse no jantar.
~X~
Latidos ecoaram pelos meus ouvidos e um leve murmúrio se fez presente, despertando-me de meu profundo sono. Abri meus olhos de forma lenta e bocejei, abrindo bem o bico. Mirei o lugar de onde estavam vindo as vozes e me assustei, farfalhando as asas.
Um cachorro enorme latia ferozmente em minha direção, mesmo preso do outro lado do pátio e seis pessoas me encaravam, sendo dois adolescentes, dois adultos e dois idosos. Eles me olhavam com certo ar de contemplação, menos os idosos, que me olhavam com certa preocupação.
- Acho que eu nunca tinha visto um cisne. – Disse o garoto.
- É porque eles não deveriam estar aqui nesta região. – Argumentou a garota, retirando uma mochila de suas costas.
- “Acho que escolhi a ave errada.” – Pensei.
- O que te trás aqui? – Perguntou o senhor.
- Como assim papai? É uma ave selvagem, não vai te entender. – Disse o adulto.
- Cale a boca. – Ordenou o senhor, erguendo uma de suas mãos. – Me diga, o que te trás aqui? – Inclinei minha cabeça para a esquerda.
- Não precisa ter medo. – Disse a senhora.
- Acho que vocês estão ficando loucos. – Falou a mulher.
Levantei uma de minhas asas e apontei para a cachorro que continuava a latir.
- Não precisa se preocupar. Vamos, nós queremos te ajudar, te darei roupas e comida.
- Papai, o que o senhor andou tomando?
- Nada meu filho incompetente. – Resmungou o velho. – Você nunca acreditou em mim, agora está aí a prova. Ele não vai ir muito longe, não do jeito que está. Ele não tem escolha. Ou fica e nós o ajudamos ou ele corre o risco de morrer de exaustão no meio do caminho. – Olhou para mim.
- Papai...
Antes que o adulto pudesse terminar a frase eu pulei do muro, que era mais alto que os homens, e abri minhas asas antes de chegar ao chão, evitando acidentes. Fechei meus olhos e a sensação de formigamento teve inicio. O calor tomou conta de mim, junto com uma forte coceira em cada ponto onde havia penas, e meu corpo começou a brilhar, abandonando a silhueta de cisne e dando forma a uma silhueta de homem. O brilho tornou-se mais fraco e eu emergi da fraca luz. Um homem novo, pálido, de olhos verdes e cabelos castanhos, levemente longos; com o peito e os braços marcados devido a extensa viagem em forma de cisne; completamente nu.
A mulher adulta tapou o rosto e os dois adolescentes arregalaram os olhos, mantendo-os focados em mim, provavelmente pelo choque da transformação, deixando-me, de certa forma, constrangido. A senhora, que dera as costas para mim assim que eu desci do muro, voltou ao local onde estávamos, entregando-me uma toalha azul bebe, que utilizei rapidamente para me cobrir.
- Como assim? – Disse lentamente o garoto.
- Desculpe pelos meus netos, eles nunca acreditaram nessas coisas.
- Sem... – Minha voz falhou. – Sem problemas. – Sorri.
- Venha, vamos comer. – Disse ele me pegando pelo pulso e me fazendo entrar na grande casa.
- Com licença. – Cochichei, olhando para a decoração extremamente cara que eles mantinham na casa.
Nós caminhamos pelo corredor principal e entramos na única porta a esquerda, adentrando em uma enorme cozinha onde uma secretária trabalhava de forma rápida sobre o fogão.
- Sente-se. - Disse o senhor, apontando uma das cadeiras ao redor da mesa.
Assim que me sentei, a secretária colocou um copo de leite em minha frente e uma bandeja com cookies e frutas, despertando ainda mais minha vontade de comer.
- Preciso perguntar. Como você fez aquilo? Digo, se transformar? – Perguntou o Adolescente. – Ah, eu sou Brendan.
- Deixem-no comer primeiro. – Disse o senhor. – Me chamo Elm.
- Tudo bem. – Disse, limpando a boca com um guardanapo. – Podem me chamar de Avis. – Solucei. – Eu sou um guardião, por isso posso me transformar.
- Jasmine. – Disse a garota, levantando a mão direita. - Pode fazer mais coisas? – Perguntou com certo brilho no olhar.
- Posso, mas não neste estado. Digo, seria imprudente.
 - Eu estou chocada. – Disse a mulher.
- Brendam, pegue uma roupa para ele, ele não pode ir embora só de toalha.
- Não precisa. – Contradisse. – Eu vou voando para casa, tu só vai perder roupa.
- Não. – Disse Elm meio bravo. – Há alguns anos uma vidente me disse que isto aconteceria e disse-me para ajudá-lo. Eu vou emprestar um dos nossos carros e um GPS, assim você se poupa e termina o que tens de fazer.
- Eu não posso aceitar isso.
- Mas vai. – Afirmou Elm com um soco na mesa.
O silêncio se fez presente na mesa e Brendam saiu da cozinha, voltando logo em seguida com uma calça, camiseta, cueca, meia e tênis parar mim.
- Espero que sirva. – Disse Brendam.
- Avis, pode ficar com meu carro, é o preto que está parado lá na frente. Nós não teremos dificuldade de comprar outro. – Disse Elm, me passando a chave do carro.
- Papai, o senhor não acha que...
Antes do homem terminar sua frase os latidos do cachorro voltaram a se fazer presente, fazendo todos do recinto ficarem em silêncio. Eu olhei para todos, pensando em quão boas aquelas pessoas estavam sendo, quando uma voz surgiu dentro de minha cabeça.
- “Estou ferrado.”
Levantei de forma brusca da mesa, já vestido, e corri até o lugar onde antes eu estava, encontrando o cachorro latindo ferozmente para um macaco sobre o muro. A família toda correu atrás de mim e em poucos segundos eles já estavam parados perto da porta, observando o pequeno filhote de gorila parado sobre o muro.
- Simiu! – Falei alto, me aproximando dele.
- “Ainda bem, achei que ia morrer tentando voltar pra casa.” - Aproximei-me o máximo que consegui e Simiu pulou em meus braços, ficando de barriga para cima, como se fosse um bebe. – “Eu não vou me transformar de volta em humano. Se eu fizer isso, vai demorar um bom tempo pra eu voltar a poder virar macaco.”
- Sem problemas, estas pessoas estão me ajudando, ajudarão você também.
- Ele também é como você? - Perguntou Jasmine.
- Sim, mas ele está muito cansado pra virar humano. As transformações cansam muito, e ele, provavelmente, está caminhando desde ontem. Eu tive uma noite de sono, mas a distância que ele percorreu foi igual a minha, e, por terra, é bem mais complicada.
- Tudo bem, vamos alimentar ele assim mesmo. – Disse Elm.
Nós perdemos algumas horas do dia com eles me conhecendo mais e eu conhecendo mais eles, enquanto eu alimentava Simiu como se fosse meu bebe.
O dia passou e o reinado do Sol começava a ter seu fim. Assim como nossa estadia na casa dessas pessoas que nos acolheram tão bem.
- Espero que vocês nos visitem algum dia. – Disse Elm, me ajudando a colocar o adormecido Simiu no banco de trás do carro.
- Visitaremos. Vocês foram muito gentis conosco. Teremos de retribuir algum dia.
- Antes de vocês partirem, eu queria lhe dar uma coisa. Pode ir lá dentro comigo?
- Claro.
Fechei a porta de trás com Simiu lá dentro e caminhei com Elm até a cozinha da casa. Lá ele abriu um armário chaveado e retirou uma caixinha, entalhada com runas, pegando, de dentro dela, uma corrente com um pingente em forma de ampulheta.
- Isto vai ajudar vocês. Não sei como, mas vai. Eu sinto a magia dele, eu só não sei como usar, espero que você consiga.
Ele não estava errado. Mesmo sem tocar no pingente eu sentia o poder que ele carregava, mas nem mesmo eu conseguiria decifrar rapidamente sua função.
- Obrigado Elm. – Disse, colocando o pingente no pescoço. – Você é muito bondoso, obrigado. - Elm sorriu e nós voltamos para o carro, conversando sobre as peças que a vida pregava.
A rua, que antes estava vazia, possuía mais um carro, igualmente preto, parado atrás do veículo que Elm me dera. Eu pouco liguei, até caminhar rumo o automóvel e olhar para dentro dele, pelo vidro traseiro, notando que Simiu não estava mais lá. A porta estava entreaberta e as rodas furadas. O pânico tomou conta de mim.
Eu olhei para os lados e notei a preocupação nos olhos de Elm também. Aquele carro, atrás do nosso, ele tinha que estar lá. Os familiares de Elm apareceram no portão e ele os informou do acontecido. Eu caminhei até o carro de trás e olhei pelo vidro traseiro. Ele estava ali. Simiu estava ali.
Tentei abrir a porta, mas não adiantou, ela estava trancada. O motorista, careca, com óculos escuros e terno, olhava para frente com um ar sério, como se eu não estivesse ali. Fiquei com raiva de tudo e golpeei o vidro. Nada. O motorista riu. O carro era blindado.
Dei um passo para trás, tomei fôlego, concentrei-me em meu punho e golpeei o vidro mais uma vez, que explodiu em vários pedaços e, de relance, pude ver a cara de pavor do motorista. Peguei Simiu e abracei-o contra o peito, correndo para longe do carro.
O motorista desceu do veículo e correu atrás de mim, o mais rápido que podia. Eu não tinha para onde ir. O carro estava inutilizado e a família de Elm estava paralisada com a situação. Eu não tinha outra opção.
Respirei fundo, abri os olhos já transformados e fiz uma coisa que nem eu achei que conseguiria. Soltei Simiu no meio da transformação e antes dele chegar ao chão agarrei-o com minhas garras, sem machucá-lo, disparando rumo ao céu em forma de uma Harpia, com mais de dois metros de altura. Simiu acordou no meio da subida e eu o tranquilizei, mentalizando o que havia acontecido. Estabilizei meu corpo com certa dificuldade e coloquei Simiu em minhas costas, planando de volta para a floresta e procurando a corrente de ar quente que levaria a mim e Simiu para casa.

Sonhos e pesadelos - Crescer

Tantos meses
Tanto tempo
Tantas folhas
Tanto vento

Vejo o quanto cresci
O quanto falta crescer
Vejo sorrisos desaparecerem
E vontades florescerem

Me pergunto o real significado
O porquê disto tudo
O motivo de deixar para trás
Tudo aquilo que havia conquistado

Estou crescendo
Estou resmungando
Estou vivendo
Envelhecendo

O porquê
O motivo
A causa
O pretexto

A cada passo eu apagado o passado
Guiando minha vida por novos caminhos

A cada ideia eu apago o já pensado
Esquecendo e deixando a outrora de lado

Afinal,
Crescer significa perder

Sonhos e pesadelos - Um dia

Sentado em uma cadeira de bar
Isolado dos eventos
Despreocupado com rumores
Atento a ideias que vão me interessar

Um velho senhor inclina seu copo
Para, Olha ao redor, Mira-me
Levanta-se, caminha até mim
Senta, Cospe, Encara-me
Põe-se a falar

Frases estranhas que vem em boa hora
Palavras desconexas a meu ver
Ele fala sobre o caos, uma arte
Uma forma de morrer

Fala que aguarda o grande dia
Um dia que valia por todos
Não há com o que se preocupar
Vive vivendo a vida
Uma forma de se levantar

O dia, põe-se a dizer,
O dia em que tudo se acertará
O dia que teus problemas acabarão
O único dia que não poderás temer

A morte
O dia pela qual vale a pena viver.

Sonhos e pesadelos - Um problema ao acordar

Às vezes eu gostaria que a noite nunca acabasse
Que meu corpo permanecesse imóvel, nunca despertasse

Gostaria que minha mente vivesse entre sonhos
Vivesse o devaneio como se fosse real
Desprendendo-me desta realidade
Desprendendo-me do carnal

Gostaria de conhecer o mais fundo abismo
Deitar-me na mais alta nuvem
Visitar o mais longínquo planeta
Cultivar a mais rara violeta

Gostaria que meu despertador não tocasse
Que meus sentimentos divagassem
E que o grito contido
Enfim, se libertasse

Sonhos e pesadelos - Lembranças de uma vida.

A ideia de ver teu rosto, ver teu sorriso, ver tuas roupas. A ideia de escutar tuas palavras, olhar nos teus olhos, tocar na tua pele. Ideias e vontades que costumam me atormentar antes de entrar no mundo dos sonhos. Ideias que eu tento controlar, tento manipular, simples ato de engaiolar.

Sofro com a ideia de ter que me afastar, criar barreiras, talvez, até, te matar. Sofro com minhas lembranças de um passado distante, em que nós éramos felizes, e deixávamos tudo em nossa volta perfeito. Sofro com as mágoas que causei, com os erros que cometi e com as ilusões que invoquei. Sofro por não te ter mais perto, por não poder mais te tocar.

Recordo-me de quando dissestes que não se afastaria, que eu era importante, que minha amizade era, de certa forma, relevante. Hoje nós não nos falamos. Deixamos de cumprir promessas feitas de forma involuntária. Para quê? Para apenas um dos lados ficar se martirizando com os fantasmas do passado? Para apenas um dos lados ficar se martirizando com imprecisão do futuro? Para quê?

Não devia ter me apegado. Eu não devia ter idealizado.

Agora, deitado novamente em minha cama, começo a relembrar antigas discussões, antigas conversas, antigos abraços, antigas ideias. Nada disso possui um sentido, não sei por que sismo em recordar, não sei porque tu ainda é importante para mim. Mais uma marca, mais uma cicatriz em minha alma.

A realidade começa a se misturar com o desconhecido. Os sonhos começam a me engolir. Morfeu finalmente chegou. O que me espera esta noite? Sonhos ou pesadelos? Lembranças de uma vida.

O Lago de Flores

A noite havia chegado há muito tempo, assim como o caos já havia chegado a minha vida. O céu estava estrelado e a lua cheia estava em seu ponto máximo, porém seu brilho era ofuscado por algumas pequenas lâmpadas do jardim. Nenhum vento era sentido e nenhum som perturbava o silêncio daquela imensa clareira. As luzes da casa estavam apagadas e nenhum morador ou guarda caminhava pelo quintal.
A casa era grande, possuía três andares e ficava ao lado de um lago de água cristalina. A faixada era modelada com aspectos arcaicos e a coloração amarela esbranquiçada realçava as estátuas acinzentadas embutidas na parede. Ao lado oposto a casa, um pequeno morro escondia um campo de mini-golfe que era cercado, junto da casa, por uma densa floresta.
Eu estava parado em frente ao lago esperando que meus inimigos se aproximassem. Inimigos que me perseguiam por eu possuir um conhecimento superior, algo que os humanos comuns não se lembravam da existência. Mas, por mais que estivessem me perseguindo, isto não me assustava, eu estava calmo, com o corpo e mente tranquilos, me possibilitando sair de qualquer situação.
Pequenos barulhos ecoaram dentro da floresta, indicando a aproximação daqueles que me caçavam. Fechei meus olhos e me concentrei. Eu sentia a energia natural daquela planície, ela transitava por todos os vegetais, pelo lago, pelo ar e pelo meu corpo. Permaneci parado por um curto tempo, visualizando as energias e concentrando-as em minha testa, ativando meu chakra do terceiro olho. Quando abri os olhos notei que toda a escuridão havia sumido. A noite estava clara, como se o sol estivesse no ápice, mas ao invés da bola de fogo estar no céu, a lua permanecia no topo. Eu conseguia ver tudo com perfeita clareza, já que existia nenhum ponto de sombra.
Olhei para trás e vi que três vultos se mexiam por entre as árvores. Virei meu rosto para a água e perguntei aos seres que ali habitavam: “O que eu posso fazer?”. Uma leve brisa passou pelo meu corpo e uma voz doce e delicada inundou meus ouvidos: “Você consegue invocar flores?”. Eu não precisava de mais dicas. Tomei fôlego e pulei dentro do lago.
A água estava gelada fazendo meu corpo se contrair um pouco, mas isto não iria me atrapalhar. Fechei meus olhos e proferi palavras em uma língua arcaica, fazendo com que flores de diferentes espécies aparecessem na superfície do lago. Tomei impulso e continuei nadando dentro do lago. Eu estava de barriga para cima e assim que eu minhas mãos tocavam uma parte da água, novas flores surgiam. Rosas, jasmim, orquídeas, tulipas e violetas foram algumas das flores que eu consegui invocar para me esconder.
A cada centímetro que eu percorria dezenas de flores apareciam sobre a água, escondendo não só o meu corpo, mas também as vibrações que ele causava. Mas me preocupar com a possiblidade de me encontrarem não era o único problema, eu estava ficando sem fôlego e meu medo de emergir e ser pego não facilitava minha vida. Juntei minhas mãos e usei grande parte da minha energia para invocar uma quantidade gigantesca de flores, cobrindo grande parte do lago, camuflando ainda mais e dando-me a oportunidade emergir de respirar. Coloquei apenas meu nariz e boca para fora da água, puxando a maior quantidade de ar possível e voltando para de baixo d’água.
Nadei durante vários metros até que finalmente cheguei à outra extremidade do lago. Antes de emergir eu tentei sentir a presença de alguma energia desconhecida, mas como senti nada, ergui lentamente o meu corpo da água e olhei ao redor. Nenhum ser, humano, animal ou espiritual, estava presente naquele lugar. Um forte sentimento de alivio percorreu meu corpo, eu estava a salvo.
Chequei novamente o perímetro e saí do lago. Minhas roupas pingavam e eu não sabia para onde ir. Olhei para os céus e admirei a lua, esperando que ele me desse alguma resposta. Assim que olhei para o sul, um pequeno cometa rasgou os céus, transformando-se em uma estrela cadente. Olhei para onde ela apontara e corri naquela direção, entrando na floresta que me salvara muitas vezes.

Diário [Em construção]

-29º dia de outubro-

Penélope
Nove horas da manhã, o universo já estava em movimento, várias pessoas já encontravam-se no trabalho, muitas estavam nascendo, porém, algumas, morrendo. Penélope saiu de seu carro e se dirigiu à entrada do cemitério. Finalmente havia conseguido coragem para visitar o túmulo de seu filho, porém ainda se sentia mal pela perda. Três anos se passaram desde o acidente com seu filho, três anos desde o atropelamento, antes da grande tragédia. Ele era uma criança, possuía apenas onze anos, tinha uma vida para viver, mas isto, infelizmente, havia acabado.
- Oi Benjamim, como você está?
- Oi Penélope, há quanto tempo. Eu estou bem, continuo aqui na entrada, olhando os visitantes e vendendo flores,
- Faz um tempo sim. Ainda não superei esta perda.- Ela levou o dedo ao olho, como estivesse chorando.
- Mas já fazem três anos dona. Já deveria ter superado.
- Eu sei, mas é difícil.
- Bem, vamos parar de falar sobre isso. Vai querer alguma flor?
- Não Ben, obrigada. o Thiago nunca gostou de flores.
- Tudo bem. Boa visita.
- Obrigada.
Penélope entrou no cemitério, sem olhar para trás, não queria voltar, ela tinha de resolver isso.

Benjamim
A mulher se afastou, desaparecendo em meio as árvores que cercavam a entrada, tirando a visão de qualquer curioso do lado de fora. Benjamim começou a regar as plantas, a organizar as prateleiras e arquivos, fazia um tempo que trabalhava lá, mas nunca trocaria este emprego.
- Nunca entendi certas pessoas, algumas nunca superam traumas. Sei que era uma criança de onze anos, um filho, mas já fazem três anos, ela não pode se martirizar para sempre. Vai acabar morrendo pelo alto nível de estresse.
Ben costumava pensar alto, ou como diriam algumas pessoas, falar sozinho. Nunca possuiu muita fé, mas sempre soube que quando Penélope entrasse no cemitério, uma grande mudança aconteceria.

Matheus
Ele estava ajoelhado em frente à uma lápide, nunca se perdoou pelo acidente, nunca teve medo de fugir. Três anos se passaram desde que fora preso, desde que matara aquela criança. Na lápide estava escrito: "Thiago Frin. "Infelizmente, apenas quando estamos perto da morte é que temos uma visão mais neutra da vida."1994- 2005".
- Nunca vou me perdoar pelo que fiz. Nunca vou conseguir esquecer o seu rosto, nem o que você me disse. Hoje trouxe esta pedra para você, acho que é uma turmalina. Sei que não gostas de flores, mas elas são tão cheirosas, tão macias, mas cada um com suas preferências não é mesmo?
Ele continuou conversando em tom baixo com algo que somente ele conseguia ver, talvez estivesse ficando louco, ou apenas tentando se acalmar.

Penélope
Ela voltou correndo para a entrada, estava ofegante, cansada e pálida.
- Ben, aquele homem sentado na lápide de meu filho. O que ele faz fora da cadeia. Por que não me contou?
- Calma Penélope, ele conseguiu regime semi-aberto, se comportou bem durante sua "estadia" na prisão. - Enquanto falava ele se dirigiu aos fundos do escritório e pegou um copo de água para ela.- Beba.
- Eu quero que ele suma daqui, eu vou chamar a policia.
- Não vai adiantar, eles não vão tirá-lo daqui.
- Como você sabe?
- Deixe eu continuar o que eu estava dizendo. Ele conseguiu regime semi-aberto e um emprego. Só sei lhe dizer que ele é um artista, não sei de qual ramo. Fazem três meses que ele saiu da cadeia, e nesses três meses, ele veio aqui quase todos os dias. Beba.
- Quase todos os dias?
- Sim, em alguns certos dias ele não vem. Seja pelo trabalho, ou por serem datas comemorativas da religião dele, ou feriados nacionais.
- Como você sabe de tudo isso?
- Ele me contou, às vezes ele para aqui e conversa comigo. É um rapaz querido, nunca trouxe problemas, sempre muito simpático. Ele se arrepende profundamente do que fez.
- É o que vamos ver.- Ela pegou sua bolsa e deu o primeiro passo para dentro do cemitério, indo ao encontro do assassino.
- Penélope, sejamos conscientes. Deixe ele lá, prove a si mesma que é forte para superar a perda. Ele não é tudo aquilo que você acha que é. É capaz daquele rapaz ser mais fraco que a senhora.
- Tudo bem. Vou fazer o que disse, mas voltarei amanhã. Que horas ele chega?
- No momento que abro o portão ele entra. Já teve dias que cheguei atrasado e o encontrei sentado aqui na frente. Sete e meia eu abro os portões.
- Obrigada Ben.
Ela estendeu o copo ainda cheio para Benjamim e seguiu para fora do cemitério. Havia deixado seu carro no estacionamento e estava atrasada para o trabalho.

Benjamim
- Sinto pena dessas duas almas. Finalmente se encontraram, só falta duas coisas, perdoar-se e ser perdoado.- Enquanto pensava alto novas pessoas foram se aproximando do escritório de entrada.- Bem, mais um dia de trabalho começa.

Matheus
- Você sabe que eu não possua uma religião, digamos, comum. Venho preparando um ritual há um mês, eu quero vê-lo, quero falar com você pessoalmente. Eu farei dia trinta e um, que é uma data realmente importante e propícia para este tipo de ritual...
Matheus sempre possuía assunto para conversar, era uma pessoa esperta, culta, mas frágil emocionalmente. Ele não usava relógios, mas sempre sabia a hora certa de ir embora, geralmente, quando a sombra da árvore atrás dele tocava a lápide.
- Tenho que ir embora, mais um dia de trabalho e mais uma noite tentando sobreviver. Até amanhã.

-30º dia de outubro-

Penélope
Sete é meia da manhã, Penélope estava encostada no portão, esperando que Benjamim o abrisse.
- Nossa dona, você chegou cedo em.
- Ele já chegou?
- Não o vi, deve ter se atrasado.
- Típico.
O portão rangia enquanto era empurrado, a fachada era simples, uma parede branca e um arco na entrada, logo em seguida, à esquerda, estava o escritório de Ben.
- Vou lá na lápide, ver se encontro algo. Até depois Ben.
Ele apenas acenou.

Matheus
- Sete e quarenta, estou atrasado.
Matheus caminhava com passos largos, como se sempre possuísse um compromisso ou algo urgente a fazer. Estava do outro lado da rua, em frente ao cemitério, apenas esperando a melhor hora para atravessar.
Assim que chegou no arco foi direto ao escritório falar com Benjamim, tirar algumas duvidas.
- Oi, até que horas vocês ficam abertos?
- Até as onze horas da noite caro rapaz.- Ben sorria para ele.- Mas me diga, estou ficando velho e cada vez mais curioso, fazem três meses que vem aqui e ainda não sabe a hora que fechamos?
- É que amanhã é meu dia de folga do trabalho, e tenho umas coisas para fazer, daí vou me atrasar um pouco, só queria confirmar.
- Tudo bem, não se preocupe com Thiago, ele vai te esperar, como faz todos os dias.
- Como você sabe que eu venho visitá-lo?
- Eu sei muita coisa Matheus.- "Até meu nome ele sabe, interessante" pensou Matheus.- Você tem uma visita, seja cauteloso.
- Tudo bem. Obrigado.
Ele caminhou rumo à lápide, mas com passos menores do que de costume. Ficou observando as árvores, olhando as centenas de lápides que estavam coladas na terra.
Ao chegar perto de seu destino, notou a presença de uma mulher, ajoelhada em frente a lápide de Thiago. Ela era familiar, cabelos pretos e lisos, pela clara, sempre com um óculos na cabeça e com um ar intelectual a sua volta. Era a mãe de Thiago, ele nunca iria esquecer.
Matheus foi para trás de uma árvore, a mesma árvore que o avisava quando era hora de ir embora. A mulher estava de costas para ele, e toda a vegetação que havia em volta da árvore o tapava, não era possível vê-lo. Penélope estava rezando, mas durou pouco. Logo que terminou sua oração ela começou a olhar em volta, como se procurasse algo.
- Ela não veio olhar o túmulo, ela está me procurando. Deve ter me visto ontem, ou algum dia que eu tenha vindo. - Matheus falou em voz baixa, para que somente ele ouvisse.
Ela desistiu de ficar lá ajoelhada, possuía mais coisas para fazer. Penélope se levantou e foi embora, rumo a entrada. Assim que ele a perdeu de vista, caminhou até a lápide e começou a conversar.

Penélope
- E então, conseguiu falar com ele?
- Não Ben, ele não apareceu lá, ele veio hoje?
- Veio sim, passou aqui tem uns dez minutos, talvez tenha se escondido de você, talvez tenha ficado com medo.
- Não sei se eu bateria nele.
- Você esta ficando com remorso. Você perdoaria ele?
- Ele matou meu filho Ben.
- Todos temos uma missão aqui. Mas só tomamos consciência dela depois que morremos. Quando vocês chegaram onde seu filho estava, ele já havia falecido, e quem disse que durante o trajeto Thiago não disse nada ao Matheus?
- Você está dizendo para eu voltar lá e falar com ele?
- Existe uma diferença em seguir as emoções e o coração. Olhe só, se você seguir as emoções, vai matar ele quando o vir. Porém, se seguir o coração, vai manter e calma e vai escutar o que ele tem a dizer.
- Não sei o que fazer.
- Já contou para o seu marido?
Um estalo percorreu o corpo de Penélope, não havia contado para seu marido o que havia acontecido. Ele, provavelmente, iria querer matar o Matheus, era arriscado, mas necessário.
- Ainda não.
- Então tire o dia de folga e converse com o seu marido, isto é importante para ele também. E me faça um favor.
- Qual?
- Volte amanhã de noite, terá uma surpresa.
- Tudo bem, mas vou falar com ele hoje.
- Não, você vai pra casa e vai falar com o seu marido. Mas, amanhã você vai vir sozinha ok?
- Muito estranho isso, mas confio no senhor.
- Até amanhã.

Matheus
- É, eu errei, achei que sua mãe iria voltar e falar comigo, perguntar sobre a minha vida na cadeia, mas acho que ela não virá. Sabe Thiago, as pessoas são estranhas, parece que tudo é calculado para dar errado, mas, no final, tudo dá certo. Confesso que sempre quis ser uma nuvem, ficar voando, olhando todos lá de cima, sem a menos preocupação. Sonho meio impossível de acontecer.
Um pequeno barulho de galho se quebrando chamou a atenção de Matheus, era Benjamim, se sentando ao lado dele, como se fossem grandes amigos.
- Sua vida está complicada em rapaz?
- Está, mas faço de tudo para não parecer.
- Vai fazer o ritual amanhã? No "dia das bruxas"?- A expressão de Matheus mudou ao escutar estas palavras. Como se fosse um pequeno alivio.
- Vou sim.- Ele sorria.- O único problema problema é que não tenho dinheiro para comprar uma vela.
- Sem problemas eu te consigo uma. Preta?
- E roxa.
- Tudo bem. Aproveita que amanhã vai estar chovendo.
- Mas a previsão é de sol, duvido que esteja chovendo.
- Sabe, a chuva afasta as pessoas daqui. Não duvide que esteja chovendo.
- Ah, claro, entendi. Boa sorte.
- Obrigado, tudo pela harmonia.- Benjamim se levantou, indo em direção ao seu escritório.
- Thiago, quando a sombra me avisa, tenho que ir. Amanhã nós nos vemos.

-31º dia de outubro-

Benjamim
O sol não apareceu durante a manhã, nem durante a tarde. O clima estava úmido, o céu estava nublado e uma leve brisa passava pela cemitério.
- É, eu consegui, não estou enferrujado, já é um avanço.
- Oi Ben, como você está? Cheguei cedo?
- Estou bem, e não, são dezessete horas, não chegou atrasada não. Como o seu marido reagiu?
- Eu contei toda a história. No começo ele queria vir até aqui e matar o Matheus, mas depois que contei tudo ele ficou mais calmo, não queria matar ninguém, nem quebrar nada.
- Temos um avanço.
- Significativo. Ele já está aí?
- Sim, está montando o ritual.
- O ri-ritual?- Ela gaguejava, estava com medo do que aconteceria aquela noite.
- Não precisa ficar com medo Penélope, confie em mim. Agora me diga, qual é a cor da morte?
- Preto é lógico.
- Resposta errada, é o vermelho. Outra pergunta, você acredita em algum Deus?
- Não, acho uma besteira isso.
- Bem, prepare-se para acreditar, me acompanhe, vamos até a outra sala.
Antes de irem Benjamim fechou o portão, ninguém iria no cemitério em um dia de chuva, então não teria problema. Logo que fechou toda a parte da frente, os dois foram até uma pequena casa onde ficavam os equipamentos usados para abrir as covas. Não era muito confortável, mas tinha uma boa vista para a lápide Thiago.
- O que ele está fazendo com aquelas velas?
- Preste atenção, elas representam: proteção, representação, adivinhação e manifestação.
- Mas por que isso?
- Teste de cultura, que dia é hoje?
- Dia trinta e um de outubro, popular dia das bruxas.
- Pois é, para os celtas hoje é o dia dos mortos, o dia em que todas as almas andam livre pelo nosso mundo. E hoje é possível falar com elas, mais que nas outras datas.
- Isso não existe.
- Você verá.

Em frente a lápide, Matheus preparava os ingredientes e o ritual. Havia pergaminhos, athames, plantas e uma caixa com fósforos. Ele iria fazer e nada o impediria.

- Ben, você acha que vai chover? Digo, as velas não ficaram acesas por muito tempo.
- Eu sei, e ele também sabe.

Matheus olhou para o alto, relâmpagos passavam pelo céu e trovões ecoavam pelo ar.
- Aquele velho conseguiu. Algum dia também conseguirei fazer o que ele fez.
Enquanto falava ele retirou de uma mochila uma pequena faca cheia de símbolos. Ele se levantou e começou a desenhar símbolos invisíveis no ar. Desenhou na direção do norte, sul, leste, oeste, em cima de sua cabeça e na terra. Logo em seguida tocou o solo e pronunciou algumas palavras inaudíveis.

- O que ele está fazendo, Ben?
- Se protegendo. Repare, ele está desenhando símbolos nas quatro direções. Quando ele fizer o desenho no chão, olhe para a grama iluminada pela chama da vela. Note que não há vento.- Eles esperaram até que Matheus fizesse o ultimo símbolo no chão é o tocasse.- O que aconteceu?
- A grama se moveu, mas como é possível, não há vento, não tem como ela se mexer.
Assim que ela terminou sua frase começou a choveu. Não era uma chuva fina, mas também não era grossa. Era uma chuva de inverno e não iria parar tão cedo.
- Repare na chama da vela, nenhuma gota d'água toca ela. Ela nunca irá apagar com o vento ou com a água, graças ao Matheus. Ele é um mago, ele consegue mudar algumas coisas do mundo real, é realmente uma dádiva.
- Então ele pode trazer o meu filho de volta?
- Infelizmente não. Se lembra que eu disse que hoje era o dia que as almas andam livremente?
- Sim.
- Hoje você verá o seu filho.
Os olhos dela perderam um pouco de sua cor, era impossível ela estar vivendo aquilo, nunca acreditou em Deus, nunca acreditou em nada relacionado a magia ou a fé. Mas ela estava vendo, era real, não havia como negar.
- Eu posso ir lá agora?
- Não, ele precisa terminar tudo, sem errar nada. Fique aqui comigo, ele sabe que você está aqui e sabe que você vai ir lá.
- Como?
- Do mesmo jeito que eu sei que você está grávida. Sentindo as vibrações do ar.
- Eu estou grávida?- seus olhos se arregalaram, ela não sabia, nunca imaginou ter outro filho.
- Deixe isso para outra hora, olhe o que ele vai fazer.

Matheus retirou de sua mochila uma pequena rosa, ainda com a cor viva. Colocou em cima da lápide e cantou alguns versos. Durante suas palavras, vários raios cruzaram o céu, como se acompanhassem uma melodia que não existia.

- Ben, explica.
- Aquela rosa significa a vida. Significa o tempo da conversa. Quando a rosa desaparecer, a conversa entre o  vocês e o espírito acaba.
- Mas por que tem de ter esta limitação?
- Você quer ficar perdida no tempo e voltar para o mundo real daqui uns trezentos anos?

Ele parou de cantar os versos e os raios pararam de aparecer. Estava feito. O ritual havia acabado, mas ele não podia seguir adiante sem uma companhia. Ele apenas ergueu a mão para o alto, despreocupado com o resto do mundo.

- Ele está te chamando Penélope.
- Tudo bem. - Suspirou fundo antes de dar o primeiro passo.

Penélope percorreu o caminho, até onde Matheus estava, com medo em seu coração e em sua mente. Ela não sabia o que estava fazendo lá, mas sabia que era aquilo que devia ser feito. Sabia que algumas coisas não podem ser planejadas, muito menos calculadas, eram simplesmente entregue à sorte.
Assim que chegou perto de Matheus, ele a olhou e abaixou a cabeça. Ele se sentia rebaixado, sentia culpa ao lado dela. Mas não foi o acaso que juntou os dois naquela noite.
- Ben me contou tudo.
- Não podemos esperar, é só se ajoelhar em frente a lápide.- Ele não olhou nenhuma vez nos olhos dela enquanto falava, apenas encarou o chão, como se cuidasse para não ser engolido.
- Tudo bem.
Antes de se mexer se lembrou do círculo que ele havia feito em volta da lápide, para evitar a chama de apagar. Caminhou até ela, e assim que cruzou aquele círculo sentiu um calor agradável, e viu que suas roupas não estavam mais molhadas. Olhou para trás e viu Matheus entrando e se ajoelhando ao lado dela. E la se ajoelhou e olhou para ele.
- Como isso é possível?
- Basta acreditar.
Ela olhou para a lápide e se lembrou da rosa. No momento que olhou para a suas pétalas ela começou a se desfazer, como se alguém estivesse soprando uma rosa de areia, lentamente, mas era notável.

-Thiago-

Tudo na volta deles mudou. O chão e o céu brilhavam em uma mistura de azul, verde e roxo, as únicas coisas que permaneciam no lugar eram a lápide a rosa, que ainda era destruída por algo invisível.
- Onde nós estamos?
- Em outra dimensão. Estamos no véu entre o mundo dos espíritos e o mundo dos humanos. Por isso esta cor.- Novamente ele não olhava para ela.
- Achei que vocês não iriam vir. Já estava me preparando para ir à Terra ver vocês.
- Quem disse isso?
- Não me reconhece mais mãe?
Penélope virou para trás e viu seu filho, seu olhos se encheram de lágrimas e seu coração começou a pulsar. Ela levantou e abraçou seu filho, sentiu o calor de seu corpo, seus as lágrimas escorrendo pelas suas bochechas.
- Duas perguntas, como você cresceu? E como eu posso te tocar?
- Penélope, os espíritos crescem também, eles amadurecem e depois voltam. Você pode tocar nele, pois também é um espírito por enquanto. Você não está no seu corpo.
- Depois de três anos eu finalmente te vejo em Matheus.- Ele correu e abraçou Matheus, foi um abraço apertado e longo, como se nenhum acidente houvesse ocorrido.- Obrigado por esses três meses de visita. Foi bom conversar com você.
- Eu continuarei vindo aqui, gosto de conversar com você.
- Ai meu filho...
- Tá mãe, tá, nunca muda. O que trazem vocês aqui mesmo?
- Eu só posso estar sonhando. Isso não pode ser real.
- Sabe mãe, às vezes passamos por experiências mágica e achamos que foi fruto da nossa mente.
- Eu sei que você já me perdoou, mas eu queria te ver, sei que você me visitava lá na prisão, sabe o que passei, sinto sua falta, só queria te ver novamente.
- Já contou pra ela o que eu lhe disse antes de morrer?
- Nunca me deram chance.
- Como assim já perdoou? Visitava? O que você disse? - Tudo era muito novo para Penélope, muitas perguntas a serem feitas.
- Mãe, eu morri com onze anos, hoje tenho catorze, eu morri muito novo, e graças a isso tenho o direito de ir e vir pelos mundos dos espíritos e do humanos. Sempre te visitei a noite, mas durante o dia ficava com ele. Ele realmente precisava mais de mim do que você. E quanto ao que eu disse, antes de vocês chegarem, eu sabia que não ia vê-los, eu disse para ele que o perdoava pelo acidente, o perdoei de tudo que aconteceu.
- Além de me dizer qual era a sua missão.
- Ben comentou algo sobre isso, que só depois que morremos sabemos qual é.
- Isso mesmo mãe, e a minha missão era juntar vocês, digo, juntar as familias. Fazer vocês pensarem na espiritualidade, mas também fazer o Matheus passar por algumas experiências ruins para aprender e se tornar mais sábio. Querendo vocês ou não, os dois, ou melhor, os três, com o papai, formam um círculo, uma familia. Quando vocês morrerem também vão saber as suas.
- Isso é tão bonito. Mas filho, por que você não voltou para a Terra.
- Não posso, ainda. Você está grávida, terá outra vida para cuidar. Então, só no futuro eu voltarei.
- Desculpa atrapalhar vocês dois, mas nosso tempo está acabando. Falta só um minuto para a rosa ser destruída. Precisamos voltar. Foi bom te ver Thiago. Não te preocupe, continuarei vindo.
- Não precisa se preocupar tanto. Você tem um emprego bacana, o único problema, agora, são as noites.
- Não adianta dizer não, eu vou continuar vindo e pode deixar que eu me cuido nas noite. Agora vamos.- Matheus abraçou Thiago e se ajoelhou.
- Vou sentir saudades filho.
- Não te preocupa mãe, eu te visito quase todos os dias. Agora vão, até outro dia.
Ela abraçou Thiago e deu um beijo em sua bochecha. Ela não queria ir, mas era necessário, era hora de ir. Ela se ajoelhou, ainda relutante, ficou olhando para Thiago por um tempo, mas foi obrigada a fechar os olhos.

-1º dia de novembro-

A forte luz que obrigou Penélope a fechar os olhos havia se dissipado. Ambos estavam ajoelhados em frente à lápide, no meio da escuridão. A chuva havia passado, mas uma leve brisa despenteava seus cabelos, e os relâmpagos nos céus tornaram-se mais frequentes.
- Gostaram da aventura?
- Foi inacreditável, nunca pensei vivenciar algo assim.
Penélope se levantou e ficou ao lado de Benjamim, porém, Matheus continuou ajoelhado na grama, olhando para a lápide.
- Sabe Penélope, não me interessa o que você ouviu lá, mas me interessa saber que atitude você tomará em relação ao Matheus.
- E-eu, não sei ao certo. Não sei se tenho como tirá-lo da cadeia, mas tentarei.
- Então você vai perdoá-lo.
Ela encarou Matheus, apesar do mesmo estar de costas para os dois.
- Já perdoei.
- E você Matheus, se perdoa?
- Não sei ao certo.- Ele se levantou, mas continuou olhando para o chão.- Eu vou continuar passando a noite na cadeia, não quero que vocês mudem isso, vou me perdoar quando meu castigo acabar.
- É uma decisão. Continuarei a vê-lo todos os dias então. Bom tenho de ir embora e fechar tudo aqui. Até amanhã.

A quinta vez e O Pombo

A quinta vez.

Quinta vez. Veneno, cortes, toxinas, de nada adiantam, sempre conseguem me salvar, mas desta vez vai ser diferente. Cansei de vocês, cansei da minha vida, cansei das falsas amizades que me cercam o tempo todo, simplesmente, cansei. Me lembro quando você disse que tudo era diferente, que cada um tinha uma maneira de ver o mundo e que, de um modo ou de outro, todos se amavam. Mentiras.
Viver no Brasil é realmente uma porcaria, não tem nenhum prédio alto o suficiente, eu tenho de me contentar com este, de trinta e dois andares. Até que tem uma brisa agradável aqui em cima, não está chovendo, o sol está brilhando e já são três da tarde. Ainda bem que ninguém percebeu, há ninguém lá na rua e não tem como me salvar.
Os suicidas costumam se matar sem deixar esclarecido o porquê de fazerem isso, não os entendo. Melhor deixar claro para os amigos, se é que amigos realmente existem, e para a família, só para prevenir uma catástrofe familiar. Acho que desde a primeira vez que eu tentei me matar, já escrevi umas cinqüenta páginas sobre minha vida e os motivos da minha decisão, mas mesmo assim, é óbvio, que vão dizer: “Ele tinha problemas mentais, por que não o levou em um psiquiatra, podia ter impedido isso.”. Aposto que este comentário vai vir da minha tia. Odeio ela, porca leiteira, vende tampa de bueiro para conseguir renda, só por que é juíza não quer dizer que possui todo conhecimento.
Às vezes eu queria ser uma nuvem, ficar lá em cima, apenas olhando o caos da cidade. E, de tempos em tempos, despencar dos céus em forma de água, e por fim, voltar para onde estava. Ou quem sabe, ser uma árvore, não tem trabalho nenhum, produz o que vai comer, toma sol o dia inteiro, o único problema, é o risco de ser cortada, mas é a vida, todos morrem. Uns mais cedo que os outros, mas morrem do mesmo jeito.
Que caos que é esta cidade, carros, barulho, poluição, ninguém me entende, ninguém me compreende, qual o problema das pessoas? Cinqüenta páginas de explicações, um testamento, onde alego deixar tudo que tenho para meu melhor amigo. Menos as contas, estas vão para a minha tia.
Bem, preciso acabar com este sofrimento de uma vez, prometi a mim que iria fazer isto antes das quatro horas da tarde. Ficar no parapeito me enjoa, é muito alto, minha coragem começa a se esvair aqui. Será que vai doer? O que será que se sente antes de morrer?
- Ei! Eu não tinha visto você aí. Pequena pomba, realmente quer ver este acontecimento? Como se você pudesse me entender. Até algum dia.
Um pé após o outro. O vento passava pelo meu corpo, não havia volta. Trinta e dois andares, aproximadamente noventa e seis metros, dez segundos de queda, uma vida de pensamentos. Me recuso a abrir meus olhos me recuso a escutar os gritos. Que Rá me perdoe, por desperdiçar esta vida, mas é realmente necessário. Só espero não cair em cima de alguém, ou de um carro.
“Segundo a polícia, um jovem, estudante do colégio Ateneu, pulou de um prédio na Avenida Antares, não sobrevivendo à queda de aproximadamente cento e três metros. O corpo foi enviado ao IML e a polícia está averiguando as causas do aparente suicídio. Dois cadernos foram encontrados no alto do prédio, porém nenhuma informação foi dada, já que os mesmos se encontravam lacrados, sendo entregue diretamente a família.”


O Pombo

-Comer, comer, voar, voar, tudo para poder se salvar. Olha que melodia bonita, finalmente eu compus algo que preste. De acordo com os humanos deve ser umas três horas da tarde, maldito sol, por que não consigo olhar diretamente para ti? Ai meu olho.
“Chega de voar, preciso descansar, é, rimou. Rumo ao prédio de vários metros que eu passo a minha tarde. Ah, eu já estou nele, que burrico. Ei, um humano, sai do meu lugar. Bicho burro.”
Esqueci que não posso falar, então tenho de pensar, concentra, concentra, ok, estou pensando. Humanos são realmente problemáticos, por que este ser está olhando para o céu, já faz quarenta segundos. Nem eu consigo ficar tanto tempo. O que será que ele pretende fazer, se jogar?
- Ei! Eu não tinha visto você aí. – Eu não sou tão pequena assim, além de ser idiota é cego, se chegar perto eu te mato. - Pequena pomba – Não, grande pato, é óbvio que sou um pombo, o que queria? Um jacaré? Uma borboleta? Um bule? - realmente quer ver este acontecimento? – Olha filho, a esta altura da minha vida eu já não recuso mais nada, então, quando o show começa? - Como se você pudesse me entender. – Se eu falasse contigo tu realmente iria estranhar, sou um bicho esperto, só escuto. - Até algum dia. – Defina dia pra mim?
Pé esquerdo na frente, ele realmente vai se jogar. Corpo ereto, camisa cinza, calça jeans, mochila da Basílio, ele é da alta sociedade, por que vai acabar com a vida? Nem eu, que vivo em média dezesseis anos, tenho coragem de pensar em me matar. E lá vai ele.
- Preciso ver o estrago. É, deve ter doído, sangue pra todo lado. Bom, foi um prazer conversar contigo, até mais ver.

Coelho branco.

Preto, esta era a cor dos céus, uma cor triste, sádica, a última coisa que eu veria. As nuvens andavam com pressa, algo estava chegando, algo imenso e poderoso. Elas eram pesadas, carregadas de algo que eu queria beber, mas o guardavam muito bem. Mais adiante, nuvens igualmente escuras se aproximavam, elas faziam o céu brilhar, clareavam as nuvens, clareavam minha alma, porém algo sempre atrapalhava a minha contemplação. Logo após as luzes, fortes estrondos ecoavam pelo ar, eram graves, faziam toda a terra tremer, um rugido de dor, um grito de agonia.
Algo está a soprar por entre meu corpo, algo frio, desnecessário. Meu corpo treme, minha mente devaneia, as nuvens correm. Vento ordinário, por que me faz sofrer ainda mais, já não sei quanto tempo mais viverei, não precisas apressar.
Amarelo, esta era a cor das folhas que se fixavam na árvore a minha frente, uma cor alegre, de ternura, o ultimo abraço que eu receberia. Seu tronco era antigo, uma madeira valiosa, que mostrava passagens de uma antiga geração. Tronco marrom, outra cor que me assiste morrer. As folhas eram pontiagudas, opacas, de tom chumbo graças ao céu. A cada rajada de vento, uma pequena folha se desprendia e pousava no chão, algumas ao meu lado, algumas voavam sem rumo, apenas seguindo o vento. Uma grande árvore anciã, quantos mortos ela já deve ter visto, mais um não faria diferença
Verde, cor da grama, cor da esperança, um sentimento que eu já abandonei. Grama alta, um conforto, meu ninho. O que serão de meus filhotes agora que me vou? Como poderei ajudá-los a enfrentar os perigos que nos cercam? Grama verde de esperanças, só me dá preocupação, só me dá trabalho. Sinto falta de seu cheiro ao cortá-la, sinto falta do seu gosto ao provar de seu corpo. Reclamo e agradeço a você por esta vida, me serviste de ninho, me deste alimento, me protegestes do frio e do calor, mas escondeu o mau. Esta pequena muda em minha frente, carregada de frutinhas vermelhas, ela foi testemunha do ocorrido. Espero que esta visão não a tenha traumatizado.
Vento, por que voltas para me fazer sofrer, já não basta ver-me aqui deitado, agonizando, pare de me fazer sentir frio. Sei que é o seu trabalho, carregar o pólen da vida, fazer as folhas chacoalharem, movimentar a grama, empurrar as nuvens, fazer todo o meu corpo tremer.
Branco, esta é a cor do meu corpo, cor do meu pelo, a cor que me matou. Dizem que sou bonito, inteligente, mas que este pelo aveludado um dia me mataria. O que posso fazer se meus sentidos me abandonaram? Culpada seja a grama que me faz sofrer agora, que escondeu um invasor, que pôs o meu ninho, os meus filhotes, em perigo. Não sei o que me atacou, tudo aconteceu muito rápido, só sei que já deixou esta planície, fugiu para junto dos seus. Meu corpo dói, minhas patas tremem, minhas orelhas chacoalham, meus dentes rangem, meus olhos já não focam mais e meu pelo abandona sua cor.
Meu corpo ganha um novo tom, meu pelos sofrem uma transformação, um borrão diferente, uma nova onda de dor. Vermelho, esta é o novo tom de meus pelos, dizem que é a cor do amor, para mim, é a cor da morte. Meu abdômen está aberto, o sangue sai de meus vasos e banha esta grama sagrada, sangue fedido, cheiro de ferrugem. Algo quente escorre pela minha testa, mais um ferimento, mais um foco de dor. Sangue maldito, sinto seu gosto, parece sal, gosto de ferro. Dizem que o último sentido que nos abandona é a audição, mas, por enquanto, possuo todos. Quanto tempo ainda tenho?
Nada, não há cor, então por que a associam com azul? A chuva, a água, o mar, nenhum destes possui cor. O liquido guardado finalmente se desprende das nuvens, mas eu não possuo mais vontade de provar do seu gosto. Eu deveria estar sentido ela, sentindo-a escorrer por meu corpo, lavar meus pelos, purificar meu corpo. Devia sentir seu gosto, sentir sua umidade, poder engoli-la. Devia poder sentir o seu cheiro, sentir o aroma da grama molhada, da terra úmida, de meu sangue fétido. Não possuo mais estes sentidos, finalmente, minha hora está chegando.
A grande árvore anciã tem seus galhos chacoalhados, por que fazes isto vento? Por que tem de movimentar tudo por onde passas? Uma folha se desprende da árvore, culpado seja o vento que a pôs em oscilação, ela voa sem rumo para os outros, mas eu sei onde cairá. Folha amarelada pelo tempo, folha de tom chumbo, retire de mim mais um de meus sentidos.
Não consigo movimentar meu corpo para retirar esta folha de minha cabeça, apenas minhas orelhas estão aparecendo. Quem afirmou que a audição é o ultimo sentido que nos abandona, acertou.
Trovões, vento, chuva, estas são as três coisas que escuto. Os três últimos barulhos que serão registrados pela minha mente. O ritmo de meu coração está diminuindo, o sangue está parando de pulsar, meu corpo será entregue à Terra e minha alma voltará para o Éter.
Eu queria poder ver esta dimensão pela ultima vez, ver meus filhotes antes de partir, alimentá-los, amá-los. Porém, não sinto, não degusto, não sinto aromas, não ouço. Eu estava certo, antes de minha alma abandonar este corpo, a única coisa que verei, será o preto.

O Passado