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Ser alguém

Esse sou eu. Não você. E a pior parte é que você não pode ser eu. Você não deve ser eu.
Eu sou aquela pessoa que sabe destruir, que sabe onde estão os seus pontos fracos e que, se for necessário (se eu julgar necessário), usará isso a meu favor. Fazendo o máximo para destruir o "inimigo". Entretanto, sou aquele que mede seus atos, tendo conhecimento das consequências. Sei como tudo acabará e tenho resistência para suportar. Sou uma pessoa sozinha, que vive com os outros por não ter para onde correr. Você realmente está preparado para isso?

Mais alguns minutos.

Não é como se eu me importasse. É só que, depois de tanto tempo, depois de tanto permanecer em pé, eu, "finalmente", caí. Não tem porque se preocupar, em breve eu levantarei, mas deixe-me aqui por enquanto, está interessante.

Gli Amanti

O doce som da chuva ricocheteava no resistente vidro da janela e inundava o quarto com a paz e tranquilidade que só ela era capaz de proporcionar. O som, a música, o ritmo descompassado das gotas, tomava conta de meu corpo e amenizava as dores que nele existiam. Dores causadas por eventos irracionais, decorridos de ações desgovernadas e vontades ocultas, impregnadas nos pensamentos mais profundos de meu ser. Pensamentos e ações que, um dia, eu prometera que não me dominariam.
Eu estava deitado, com o corpo rígido, como se há muito tempo não o movimentasse. Meu tórax parecia estar comprimido e pequenas pontadas de dor transitavam pelos arredores de minha nona costela do lado direito. Movimentei, lentamente, os dedos de minhas mãos, um a um, conferindo se estava tudo em ordem; em seguida, com certa expectativa, movimentei os dedos de meus pés, soltando uma lufada de ar, seguida de uma leve risada, causada pela alegria de ter conseguido.
- Estava conferindo se não possui nenhuma lesão na coluna?
Uma voz, feminina, suave e reconfortante, quebrou o ritmo descompassado da chuva e desviou minha atenção para o lugar de onde ela vinha. Eu estava de olhos fechados até então, abrindo-os lentamente e piscando várias vezes, devido a luminosidade excessiva dentro do quarto, mesmo que toda luz proviesse de fora do quarto.
Logo que meus olhos se acostumaram com a claridade, eu pude assimilar onde estava. O quarto era perfeitamente branco, tendo a cama, onde eu estava, no exato centro e uma grande janela, que preenchia toda a parede, no meu lado esquerdo. Em frente à cama havia uma pequena mesa de mármore, com uma cesta de frutas frescas em seu topo, e quatro cadeiras em sua volta, sendo que uma possuía um casaco em seu encosto. Ao lado direito, havia um sofá-cama, aconchegando uma mulher loira, por volta dos trinta anos, trajando uma roupa branca e com um crachá no lado esquerdo do peito escrito “Parvana”.
Ela se levantou do sofá e veio em minha direção com um sorriso estampado no rosto, colocando a prancheta na prateleira que ficava em meu lado direito e conferindo o soro acima de mim.
- Sim. – Respondi com uma voz meio gutural. Tossi. – Estava conferindo. – Sorri com o canto da boca.
- Isso demonstra um pouco de conhecimento. –Disse, olhando-me dos pés a cabeça. – Então, estás te sentindo bem? Com dor em algum lugar?
- Um leve desconforto no lado direito, mas nada de mais.
- Acha que precisa de mais uma dose de relaxante ou dá pra aguentar?
- Dá pra aguentar.
- Você foi muito corajoso. – Ela olhava em meus olhos como se enxergasse algo a mais. – E muito imprudente.
- Desculpa. Eu só fiz o que achava ser certo.
- Não te culpo por algo. – Ela olhou a prancheta. – Só acho incrível a sorte que você teve. Podia estar morto agora, enterrado, ou virado cinza.
- Desculpa? – Dei uma leve risada e, devido a ela, senti uma forte pontada de dor entre as costelas.
- Calma, relaxa. – Ela tocou de leve em minha perna. – Eu vou sair, preciso ir ver como estão os outros pacientes. – Ela sem virou e caminhou em direção à porta, parando logo em seguida. – Aproposito, você tem um belo namorado.
- Namorado? – Perguntei atônito.
- É, um rapaz moreno, olhos escuros, altura mediana, cabelo arrepiado e levemente marcado. Ele te visitou quase todos os dias. Será que o incidente afetou a memória?
- Não. Quer dizer, espero que não. É só que... – Fiz uma pausa. - Até eu acordar, eu não tinha namorado.
- Bem. – Ela olhou o relógio. – Ainda está cedo para ele chegar, são duas da tarde, ele geralmente chega depois das quatro. Quando chegar vocês conversam. Eu realmente preciso ir. – Ela sorriu de forma tímida. - Qualquer coisa é só apertar o botão. – Ela apontou rapidamente para algum lugar próximo a minha cama e seguiu seu caminho até a porta, abrindo-a e deixando-me sozinho naquele quarto branco.
O tempo começou a passar e a televisão já não me distraia mais, obrigando-me a buscar pensamentos na vista de minha janela. Uma paisagem um tanto bucólica, contendo árvores, prédios e o céu cinza, liberando sua raiva sobre o labirinto de concreto na qual eu morava.
Eu estava com meus braços e pernas doloridos pelo fato de estar a um bom tempo deitado, mas eu não podia me mexer, caso contrário, a dor em meu tórax se tornava insuportável. Restando-me nada para fazer, a não ser fechar meus olhos e tentar descansar mais um pouco, desligando-me daquele excesso de branco.
- “Preciso me lembrar do que aconteceu.” – Pensei.
Era uma quarta-feira, véspera de feriado. O dia fora um tédio total, pelo fato de eu ter passado grande parte do meu tempo fazendo os trabalhos da faculdade e dando aula, mas a noite seria boa, ou, como dizem alguns, um erro.
Eu e um grupo de amigos, antigos colegas de colégio, havíamos combinado de irmos a uma festa, uma casa noturna que ficava próxima de todos. A noite estava limpa, com o céu sem nuvens e com uma brisa aconchegante. Nós combinamos de chegar à casa noturna por volta das onze horas da noite, e assim fizemos; adentrando no local por volta das onze e meia e nos divertindo ao som de músicas eletrônicas e diversos outros estilo. Nós bebemos, rimos, caímos e levantamos, sempre com um sorriso no rosto, com a alegria de estarmos juntos correndo em nossos corpos.
E assim se deu a noite, uma festa grande, em um lugar pequeno e abafado, cheirando a cigarro. Mas não importava, afinal, o êxtase da alegria coletiva era superior a tudo.
Nós permanecemos lá até às cinco horas da manhã de quinta, nos locomovendo cansados e cambaleando até a saída da casa noturna. E foi aí, nesta hora, que as coisas começaram a dar errado.
Do lado de fora da casa noturna havia várias pessoas formando um círculo em volta de outro grupo menor. Eu me espremi entre a grande multidão de adolescentes curiosos, afastando-me de meus amigos e parando em um ponto que eu conseguia enxergar a cena de forma satisfatória.
Lá, no meio ao círculo, havia quatro pessoas. Duas delas, sendo uma menina e um menino, estavam gritando para as outras duas pararem de brigar, enquanto os outros dois, dois rapazes, duelando entre si no meio do formigueiro, socando-se e se chutando sem piedade, tentando acabar com o seu adversário. 
As pessoas em volta estavam paradas, sem ajudar ou chamar alguém que pudesse ajudar, o que, de certa forma, me preocupava. Lembro-me vagamente do rosto de um dos combatentes, alto, cabelos pretos espetados, com a raiva estampada em seus olhos. E o outro era alguém que eu deveria me recordar, mas, acredito eu, devido ao álcool, eu não conseguia associar o nome a pessoa.
Eles estavam envolvidos de mais com a briga, sem se importar, ou sem enxergar, a grande plateia que havia se formado. Eles estavam em um êxtase de puro ódio um com o outro. E foi por causa deste ódio, e de certa idiotice minha, que eu fui parar no hospital.
Eles estavam próximos um do outro e, assim que encontrou uma brecha, o maior, de cabelos pretos, chutou o tórax do moreno e o arremessou para trás, fazendo-o perder o equilíbrio e cair no chão, levantando-se com certa dificuldade.
- Eu vou te ensinar a não mexer com a mulher dos outros. – Disse com a voz entredentes; assim que ele terminou a frase ele retirou uma pistola de dentro da sua calça e apontou para seu adversário, fazendo-o ficar imóvel, após recuperar o equilíbrio.
Aquele pequeno ato, de retirar um pedaço de metal mortífero do bolso, foi o suficiente para fazer com que todos que estavam em volta se atirassem no chão e permanecessem por lá. Todos menos eu.
No exato momento em que todos se abaixaram, e eu mirei os olhos do moreno, observando o pânico tomar conta de seu corpo, eu me recordei de onde o conhecia. Ele era estudante, provavelmente do segundo ano do ensino médio e pegava sempre o mesmo ônibus que eu. Antes de entrar na faculdade eu fiz um curso preparatório e, quase, todos os dias, quando eu saía do curso, eu o via subir no mesmo ônibus que eu, sempre sorrindo. Característica que eu adquiria quando o via. Além de uma forte vontade de rir.
Talvez eu me julgue idiota por, tecnicamente, me apaixonar por alguém que eu não conheço, por sentir atração por uma pessoa que eu nunca havia conversado, por sentir desejo por alguém que eu, talvez, nunca fosse saber o nome. Mas havia acontecido e eu não podia negar aquilo para meu eu.
O tempo passou e eu continuei vendo ele, até que, por alguma eventualidade do destino eu descobri seu nome enquanto perambulava por páginas aleatórias de assuntos prazerosos em uma rede social. Mas parecia que o destino não estava ao meu favor e me aprontou uma troca equivalente. Eu descobri o nome, mas nunca mais o vi.
Os meses passaram, o vestibular chegou, eu entrei na faculdade e, depois de seis meses eu o encontrei de novo. Rodeado de pessoas estranhas, com uma arma apontada em sua direção.
- Ca-ca-calma. – Disse Matheus, levantando a mão trêmula em direção ao que segurava a arma. – Abaixa isso, alguém pode se machucar.
- Nunca. Você vai aprender a não mexer com a mulher dos outros.
Os dois estavam parados, sem se movimentar, encarando os olhos um do outro. Um tomado de raiva e o outro de pânico. O tempo pareceu desacelerar e aqueles poucos segundos, em que apenas nós três estávamos de pé, pareceram eternos.
Uma pequena movimentação começou a se formar na saída da casa noturna e assim que os seguranças de aproximaram do indivíduo armado eu fui tomado por um pressentimento de morte, algo que nunca havia sentido antes. Meu corpo pareceu agir sozinho e quando dei por mim estava correndo em direção ao Matheus, pulando para protegê-lo de algo que eu nem sabia se viria. Mas eu estava certo.
Os seguranças agarraram o meliante e, talvez por um reflexo, ele apertara o gatilho, disparando a pistola e libertando a bala de seu casulo acobreado. O projétil cruzou a distância rapidamente, encontrando abrigo em minhas costelas, e se não fosse por mim, devido a altura de Matheus, provavelmente ele não estaria mais caminhando no reino dos vivos.
Meu corpo baleado checou-se contra o chão duro da rua e minha última lembrança é o rosto de Matheus, me olhando, ainda com pânico nos olhos e se ajoelhando ao meu encontro. Conferindo, rapidamente, se os seguranças já haviam dado conta do atirado.

~x~

“Blaam”. A porta bateu. Despertando-me de minhas lembranças.
- Ops. – Disse uma voz desconhecida.
Os passos, lentos e marcados, inundaram o quarto, fazendo-me prestar atenção nos outros ruídos que ali existiam. O cair das gotas de meu soro, o extremo agudo causado pela televisão no mudo, o som da chuva a se chocar contra vidro e a respiração da minha mais nova companhia, que era lenta e tranquila. Eu permaneci imóvel, como se estivesse dormindo, afinal, eu esperava uma visita e queria saber como ela agiria comigo ali.
- Me disseram que você poderia acordar entre ontem e hoje. – Uma mão fria segurou a minha. – Mas até agora nada. Já faz quatro dias, e eu ainda não consegui falar contigo. – Ele soltou minha mão e eu abri levemente os olhos, observando aonde ele iria.
Ele caminhou até a parte da frente da cama, retirou a mochila de suas costas e a colocou em cima da mesa, pegando uma das frutas que ali estavam e dando uma mordida. Ele voltou a ficar na frente da cama, de costas para mim, observando a imagem muda que era exibida na televisão. Eu abri por completo meus olhos e fiquei mirando suas costas, esperando que o silêncio fosse quebrado.
- Eu queria entender o que te levou a fazer o que tu fez, digo, a gente não era nada. Nós só tínhamos nos visto nos ônibus, mas, fora isso, nada. Eu não sabia seu nome, sabia nada. – Ele fez uma pausa. – E mesmo assim você me salvou. – Mordeu a fruta novamente.
“Hoje eu conversei com minha psicóloga e com alguns amigos, inclusive aqueles que estavam lá no dia, aquele casal que estava do meu lado. Eu – Fez uma pausa. – Eu realmente não sei o que está acontecendo, mas depois do que você me disse, eu tenho pensando a todo tempo sobre isso. É difícil, de certa forma, eu... – Ele virou em minha direção, vendo-me de olhos abertos. – Você está acordado?! E não falou nada! – Ele arregalou os olhos.”
- É que você estava num monólogo tão interessante. – Sorri.
- Ah. – Ele ficou corado.
- Quer continuar dizendo o que você falar?
- Ah, é que... – Ele olhou pra baixo, permanecendo assim por um tempo.
- Antes de você chegar – comecei a falar. – Eu estava recordando do acontecido, puxando na memória todos os detalhes daquele evento. Mas eu não recordo de nada depois de ter levado o tiro e caído em sua frente. E agora a pouco você comentou que eu te falei alguma coisa. O que foi que eu te disse?
- Bem, eu não lembro com exatidão o que você me falou, mas vou tentar te dizer. – Ele evitou olhar em meus olhos desde a outra pergunta.
“Logo depois que você levou o tiro, eu me agachei em seu lado e observei, por um curto espaço de tempo, os seguranças da casa noturna imobilizarem o cara que estava armado. Eu estava em pânico, tremendo, ofegante, primeiro por ter uma arma apontada pra mim e depois por ter visto um desconhecido levar um tiro que deveria ter sido meu.”
“Eu fiquei do seu lado e assim que olhei nos seus olhos eu lembrei que, teoricamente, já te conhecia. Você era o guri do ônibus, que eu via diariamente. Você e uma amiga, que, pelo fato de vocês dois sorrirem quando me viam eu achei que era afim de mim. Mas eu estava errado. Assim que me toquei de quem você era, milhares de perguntas surgiram em minha mente, dúvidas sobre mim e sobre você, que me salvara naquela noite.”
“Como já disse, eu estava com a mão trêmula, mas, mesmo assim, me senti obrigado a colocar minha mão sobre a sua testa e, assim que o fiz, sorri em sua direção, e, por sorte, você me devolveu o sorriso. Você respirava com dificuldade, buscando mais ar do que parecia precisar, e isso me preocupava.”
“As pessoas começaram a ligar para os policiais e chamando uma ambulância, gritando em seus telefones, dizendo que um rapaz havia sido baleado. Eu olhei para os lados, já mais calmo e você segurou minha mão, puxando de volta minha atenção e iniciando um diálogo comigo.”
“- Seis meses sem te ver e, quando te vejo, tenho que te salvar. – Você tossiu um pouco de sangue. – Eu não sei se vou ter uma chance de te dizer isso de novo, mas eu preciso dizer. – Fez uma pausa. – Eu gosto de ti. Gosto mais do que deveria gostar, afinal, eu não te conheço direito, eu só te via subir no mesmo ônibus que eu. Pode parecer estúpido, mas é como se, desde a primeira vez que eu te vi, me sentisse obrigado a te proteger, a te conhecer, a estar, de alguma forma, ligado contigo. – Fez novamente uma pausa. – Desculpa se estou te assustando, mas é só o que eu sinto.”
“Depois disso você desmaiou e, logo em seguida os paramédicos chegaram. Pondo você na ambulância e o trazendo para este hospital.” – Ele olhou o quarto.
“Eu depus contra o atirador, junto de alguns amigos seus. E até então eu ainda não tinha descoberto seu nome, sentindo-me obrigado a falar com menina que eu via sentada ao seu lado no ônibus. Muito querida ela. Ela me falou que você estava aqui, me disse o quarto e, o mais importante, seu nome. Tudo isso no dia mesmo dia em que o incidente aconteceu.”
“Eu vim aqui apenas no dia seguinte e fiquei feliz de saber que estava tudo certo contigo, que não havia perigo de morte e que você estava sedado, por causa da costela quebrada e do fígado perfurado. Além de alguns vasos rompidos no pulmão. Mas, teoricamente, tudo ficaria bem. Pelo menos para você.” – Ele sorriu.
“Eu me sentia culpado pelo acontecido. E doía, ainda dói, te ver assim. – Ele olhou para mim. – No primeiro dia eu fiquei sentado, te observando, vendo seus amigos e familiares entrarem e saírem deste quarto, perguntando para os médicos e enfermeiros se estava tudo bem. Eu estava em um mundo interno, buscando respostas para perguntas que eu não sabia ao certo se haviam respostas. E foi nesta hora que as palavras que você me disse surgiram em minha mente.”
“Eu refleti com meus amigos, com minha psicóloga e até contigo, mas nunca encontrava uma resposta digna. Eu estava, e continuo, confuso com meus sentimentos. Eu te olho deitado nesta cama – Olhou em meus olhos, com os seus repleto de lágrimas. – E sinto vontade de chorar, de poder voltar no tempo e ter falado contigo no ônibus, para evitar que isso tivesse acontecido. Eu me sinto ligado contigo. E sempre que estou longe, meus pensamentos estão aqui. – Ele respirou fundo e uma lágrima escorreu por suas bochechas.”
- Mas eu também estou errado. – Voltei a falar. - Por ter te desejado e não ter falado contigo. Quer dizer, ter falado apenas quando estava à beira da morte. O erro é mais meu do que seu, afinal, até seu nome eu já sei, Matheus. – Ele me encarou.
- Como você sabe?
- Eu encontrei seu perfil em uma rede social, muito por acaso, antes de nós ficarmos seis meses sem nos vermos.
- Que stalker. – Ele riu e secou suas lágrimas. – Mas eu ainda não entendi o porquê você me salvou daquela bala.
- Você já sabe sim, só não quer admitir. Eu não posso afirmar com toda certeza, mas, eu posso te afirmar que essa é das épocas que mais dói.
- Como assim?
A porta abriu.
- Está tudo bem? – Parvana adentrou no quarto, fazendo-nos olhar para ela. – Opa, olá Matheus, chegou mais cedo hoje.
- É, consegui me livrar de uns compromissos.
- E então, está precisando de alguma coisa? – Ela se virou para mim.
- Não, já tenho tudo o que eu quero. Uma costela quebrada, uma enfermeira especial e um novo amigo.
- Namorado. – Parvana disse em meio a uma tosse.
- Oi? – Matheus perguntou.
- Nada. – O silêncio se fez presente na sala. – Quer dizer, vocês só não sabem ainda. – Ela sorriu e eu a encarei com um sorriso no rosto.
- E o que nós temos de fazer? – Ri.
- Já se apresentaram?
Eu olhei para Matheus, que estava meio cabisbaixo, mas com um sorriso visível para mim. Eu estiquei meu braço, com certa dificuldade, em sua direção e ele olhou para mim, vindo até meu encontro e apertando minha mão com certa delicadeza.
- Prazer, Matheus. – Ele sorriu.
- Prazer, Lucas.

Chance


Certo dia, ao descer um lance de escadas, uma mulher de cabelos negros como noite e olhos profundos dirigiu a palavra ao ouvinte. Sua voz era aguda, afinada, e revelava uma pequena pontada de alegria. Os assuntos variavam ritmicamente e duravam somente o necessário, duravam o tempo certo entre cada degrau. Eles eram, alguns, desnecessários, amplos, sem um grande foco, ou um objetivo, mas palavras fluíam com naturalidade entre os dois e, muitas vezes, a mulher esboçava um largo sorriso em sua face, denunciando certa simpatia pelo ouvinte.
Os dois estavam quase chegando no fim daquela escada, quase, infinita, quando um assunto estranho ao ouvindo tomou rumo, um assunto direcionado aos amantes. O ouvinte era desconfiado e idealizador, sonhando com o ser perfeito, sonhando receber um amor que nem mesmo ele, o ouvinte, se achava merecedor. Foi aí que a mulher de cabelos negros como a noite imortalizou algumas palavras em seu coração: “Dê uma chance aos outros e dê uma chance a si mesmo”. 

Vivendo em um mundo que não dá pra entrar

Vivendo num mundo que não dá pra entrar.

Ele atou minhas mãos ainda mais forte do que antes e me fez olhar em seus olhos. O pânico tomou conta de mim. Os olhos cor de fogo me encaravam, era meu fim, não adiantava lutar mais. Ele retirou do bolso um revolver e o apontou para minha testa. Meu coração parou e minha respiração falhou. Fechei meus olhos. Um barulho metálico. Era o fim. Uma explosão.

~X~

Meu corpo estava suado e minhas mãos tremiam. Minha mente ainda acreditava que tudo aquilo havia sido real, mas eu sabia que havia sido apenas um sonho, um pequeno pesadelo. Minha respiração oscilava, fazendo-me ora entrar em apneia, ora buscar mais ar do que aguentava. Meus olhos estavam fechados, talvez por falta de coragem de enxergar o mundo, por medo de que aquilo tudo que eu vivi no sonho tivesse, de alguma forma, virado realidade.
Respirei fundo, tentando me acalmar, e um braço se pôs em volta de mim, abraçando-me de forma aconchegante, como se buscasse me proteger. Mas não foi este o resultado. Meu coração disparou ainda mais do que quando eu acordei do sonho. Minha respiração se tornou mais pesada, meus músculos se contraíram e minha mente se tornou mais ativa, enchendo-me de pensamentos.
Eu era um adolescente que morava com os pais e não dividia a cama com ninguém, principalmente pelo fato de estar solteiro.vNão bebia, não fumava e não usava drogas, tornando impossível que eu, por uma overdose, perdesse alguns pontos de minha memória. Eu não havia saído, não havia sofrido um acidente, o que estava acontecendo?
Olhei para o lado, após alguns segundos, notando que a pessoa ao meu lado não esboçava sinal de estar acordado, e me deparei com um homem, adulto, com cabelos loiros e curtos, dormindo de boca aberta. Meus olhos se arregalaram e eu me soltei de seus braços abruptamente, buscando a parede para me apoiar.
Meu companheiro de cama acordou assustado e me encarou com um olhar de preocupação, buscando entender o que estava acontecendo.
- O que foi? Tá tudo bem? - Disse ele entre um bocejo.
Olhei para o lado e fiquei ainda mais tenso. Eu não conhecia aquele lugar. Eu não sabia onde e com quem estava. O quarto era grande, possuía dois armários, uma cama de casal encostada na parede, uma televisão, um piano digital e uma escrivaninha repleta de partituras. Mas aquele lugar ainda continuava ausente em minhas lembranças.
- Brendan, está tudo bem? - Ele me olhou mais preocupado do que antes.
Respirei fundo.
- Talvez você... - Minha voz estava mais grave. Recomecei. - Talvez você ache estranho o que eu vá te perguntar agora, mas como eu lembro de nada, terei de perguntar. Quem é você?
Ele se sentou na cama e olhou em meus olhos, deixando a boca levemente aberta.
- Como assim, Brendan? Como assim não se lembra?
- Eu não sei quem você é, eu não sei onde estou, não sei nem que dia é hoje. - Olhei para minhas mãos. - E por que minhas mãos estão com manchas de sol? - Olhei para o loiro. - Pensando bem, por que eu consigo te enxergar tão bem?
- Brendan, você tá me assustando.
- Eu estou te assustando? Eu acordo na cama com um cara que eu não conheço, enxergando bem sem óculos e com a pele envelhecida uns dez anos, e eu que estou te assustando!?
- Tá, calma. - Ele olhou para o colchão.
- Calma? Desculpa, quem precisa de calma pra pensar é você que acha que eu estou mentindo. Qual seu nome mesmo? - Sua atenção voltou para mim e sua expressão passara de preocupado para estado de choque, levando certo tempo para falar. Aumentando mais minha insegurança com ele em minha suposta cama.
- Elliot, meu nome é Elliot. E nós dois somos namorados. Está é nossa casa, nós moramos juntos, e eu estou no seu quarto, já que você sempre disse que quando fosse morar sozinho não gostaria de dividir quarto.
- Namorados? - Falei desacreditado, porém, relaxado. Se nós realmente fossemos namorados, eu não corria perigo ao lado dele.
- Sim, por quê?
- Não me lembro de ter começado nada com alguém.
- Do que você lembra? - Ele passou as mãos pelo cabelo.
- Minha última lembrança. É do dia vinte e sete de outubro e eu fui dormir de madrugada, após tocar, pela primeira vez, em um bar da cidade baixa.
- Pela primeira vez? - Disse ele de forma séria.
- É, eu nunca tinha tocado antes.
- Brendan. - Disse ele tentando segurar uma das minhas mãos, mas eu a retirei antes do toque. - Isso faz dez anos. - Disse, voltando a posição anterior e me olhando nos olhos.
O mundo parou de girar para mim. Tudo se tornou mais devagar e minha mente deu início a uma forte inspeção de memórias. Flashes de memórias que eu nunca imaginei que ainda existissem em meu cérebro repercutiram por meu consciente, mostrando-me imagens de minha infância, de meu colégio, de meus amigos, de meus ensaios, de meus planos e de minha apresentação, mas nada após ela, nada do que se passara nos últimos dez anos.
Levantei com só salto da cama e comecei a abrir as portas dos armários rapidamente, sem me importar com que Elliot pensaria, encontrando na última porta o que eu procurava: um espelho. Olhei meu reflexo e entrei em estado catatônico, olhando fixamente para frente. Eu possuía dezessete anos há uma noite, e agora, possuía vinte e sete. Meu cabelo estava curto, com indícios de um topete a frente, meu corpo estava levemente marcado e eu enxergava perfeitamente sem o auxilio de óculos. Minha pele estava levemente bronzeada e algumas manchas que eu não possuía encontravam-se por meu corpo. Virei minha cabeça e olhei para Elliot.
- Que dia é hoje?
- Dezesseis de dezembro de dois mil e sete.
Olhei para os lados, buscando respostas que nunca teria e recuei alguns passos, sentando na cama. Inclinei meu corpo para frente e apoiei minha cabeça em minhas mãos, deixando que lágrimas escorressem por minha face.
- Por que isso tá acontecendo? Por que eu dei este salto temporal? Ou pra você, por que eu perdi minha memória?
Eu continuei com minha cabeça apoiada em minhas mãos e senti a cama se mexendo, seguido dos braços de Elliot me envolvendo. Eu não o conhecia, mas um abraço, até o de um estranho, naquela hora, era a melhor coisa que eu poderia pedir.
- Brendan, eu não consigo acreditar em tudo isso, mas não acho que você seja um ator tão bom pra me pregar uma peça assim, tão convincente. Também sei que, se for verdade, será difícil para você acreditar em mim, mas, por favor, vamos comigo a um médico. O dia está ficando claro e nenhum de nós irá conseguir dormir agora. Por favor.
Eu levantei meu tronco, obrigando Elliot a retirar seus braços de mim e o encarei com meus olhos inchados por ter chorado. Observei que seus olhos também se encheram de lágrimas, mas nada fiz a não ser me levantar da cama e olhar para ele.
- Tudo bem, só me diz onde estão minhas roupas e onde é o banheiro, preciso de um banho.

~X~

- Bota uma roupa quente. - Gritou Elliot do lado de fora do quarto.
Seguindo seu conselho, vesti-me com as melhores roupas que encontrei no armário que Elliot dizia ser meu. Meu estilo havia mudado completamente nestes últimos dez anos, mas isto não me impediu de encontrar uma camiseta preta no fundo do armário, uma calça preta, um sobre-tudo curto, e um cachecol longo.
Nós caminhamos pelo Hall principal do prédio, cruzando por pessoas que eu nunca vira na vida, até chegar à porta de saída do prédio, onde Elliot parou e me encarou. Ele colocou a chave na fechadura e abriu a porta, revelando uma rua branca, coberta por neve, onde pessoas e carros passavam de forma rápida e apressada.
- Sabe onde nós estamos?
- Brasil com certeza não é. - Afirmei, olhando com certo brilho no olhar a neve que caía em minhas roupas. Era a primeira vez que eu via neve.
- Bem-vindo a Londres.
- Londres! - Falei mais alto que deveria, atraindo atenção de alguns pedestres mais próximos e fazendo Elliot sorrir um pouco.
- Sim, Londres, nós nos mudamos pra cá há um tempo, cinco anos. Antes disto nós moramos um pouco em Nova Iorque.
- Meu deus, quem de nós é o rico?
- Eu. – Ele riu. - Vem vamos logo para o neurologista. – Disse, puxando meu braço para acompanhar as largas passadas que ele dava.

~X~

- Senhores, desculpem-me pela demora. A ressonância magnética não apontou nenhuma anomalia em seu lobo frontal, parietal, temporal e occipital, está tudo em ordem. E os exames posteriores não apresentaram nenhuma deficiência nos contatos sinápticos. Mas isso me preocupa. Eu nunca tinha visto um caso como este. O que me leva a criar várias hipóteses, uma mais improvável que a outra.
- E tem alguma chance de eu recuperar minhas memórias? - Perguntei, arrumando a camisa.
- Como eu disse, não há lesões. E nós não sabemos como recuperar uma memória, mesmo com este espaço de dez anos, nós não avançamos muito na área cerebral.
- Ah, tudo bem. Obrigado doutor. – Falei meio deprimido.
- Senhor Brendan, você se importa se eu falar a sós com Elliot?
- Não, tudo bem.
Cumprimentei o Doutor e dei as costas à sala, caminhando pelo corredor onde algumas pessoas aguardavam sua consulta. Respirei fundo e me direcionei a janela, fazendo uma das coisas que eu mais gostava, observar uma cidade em movimento.
O tempo passou vagarosamente durante o período em que Elliot permaneceu falando com o neurologista, e isto não me fez bem. Comecei a pensar em tudo que perdi ao longo dos anos. A faculdade que eu teria de refazer, os amigos que eu abandonei nas areias do tempo, as viagens que esqueci, as histórias que publiquei, os CDs que gravei, a banda que formei, quer dizer, isso se eu tiver feito alguma coisa destas.
Lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto novamente e pequenos soluços emergiram de meu peito. Eu estava com medo. Pela primeira vez em muito tempo, eu sentia o pavor tomar conta de meu corpo. Eu estava sozinho, perdido em um mundo desconhecido, vivendo em um tempo sumido.
- "Perdido num mundo que não dá pra entrar."
A voz de Elliot despertou-me de meu transe, fazendo-me, novamente, secar as lágrimas de meu rosto. Ele ficou ao meu lado, olhando o movimento pelo vidro, mas eu evitei olhá-lo.
- Eu não entendia o que isto significava quando eu te escutava cantar. Agora eu entendo. E me sinto inútil por não poder fazer nada pra te ajudar.
- Desculpa. - Disse lentamente.
- Pelo quê?
- Não sei ao certo. Você falou que nós éramos namorados, e eu deveria te abraçar, te beijar, te amar, mas eu não consigo. Não consigo te tocar, mal consigo te olhar. Desculpe estar te dando trabalho.
O silêncio pairou no ar e nós ficamos encarando a cidade, respirando fundo e, eu, fazendo força para não chorar.
- Não. - Ele fez uma pausa, fazendo-me olhar em seus olhos. - O único trabalho que você vai me dar é o de tentar te reconquistar. E eu sei que vai ser difícil, já que na primeira vez não foi nada fácil. - Rimos. - Vem, vamos comer.
Elliot me pegou pelo pulso e me arrastou para fora do prédio onde estávamos, levando-me para almoçar em, segundo ele, um dos meus restaurantes preferidos.

~X~

- Aqui está seu troco.
- Acho que vou vomitar. - A mulher do caixa me olhou com os olhos arregalados
- Ei, vomita lá na rua então, não dá trabalho para o pessoal. Ninguém mandou comer tudo aquilo. - Disse Elliot entre risadas.
- Mas estava tão bom. Acho que vou vomitar pra comer de novo.
- Que nojo!
Nós saímos do restaurante e caminhamos até seu carro, fazendo certo esforço nas várias vezes que eu perdia o equilíbrio devido à neve, obrigando Elliot a me segurar.
- Pronto para mais uma aventura?
- Não dá pra dormir não?
- Não, quero te mostrar um lugar especial.
- Outro restaurante?
- Uma vez gordo sempre gordo, hein?
- Gordo, mas gordo do bem. - Fiz uma careta, rindo logo em seguida.
O sol estava escondido atrás das nuvens e a neve caía de forma amena, possibilitando o trânsito dos veículos e pedestres naquele inicio de tarde. O "London Eye" estava parado, mas isto não retirava em nada sua beleza. As luzes de cada cabine estavam acesas, criando um contraste com o escuro céu que pairava sobre nós. O Palácio de Westminster estava coberto de neve em seu topo e o Big Bang anunciava o inicio do décimo quinto ciclo diário. O contraste da construção com o branco absoluto era incrível, realçando detalhes que eu nunca imaginei que iria observar.
As pessoas caminhavam nas ruas, munidas de roupas, trajando gorros, cachecóis, capas aveludadas, luvas extremamente grossas, e roupas que engordavam até o mais magro pedestre. Alguns eram mais atrevidos e circulavam pela cidade com suas bicicletas dentro da ciclovia. Meus olhos brilhavam e eu não continha meus sorrisos enquanto olhava para fora através do vidro.
- A primeira vez que a gente veio aqui você fez as mesmas caras. É engraçado.
- Desculpa, mas, pra mim é a primeira vez que eu vejo neve e Londres.
- Tudo bem, eu que não me acostumei com isso.
- Não te culpo. - Fiz uma pausa. - Para onde estamos indo?
- London Palladium.
- O que é o London Palladium?
- Você vai ver. - Elliot encostou o carro e eu pude ver as letras douradas que enunciavam o "Palladium". - Vamos descer. Eu vou entrar ali e te peço para me esperar aqui fora. Desculpe por te fazer esperar no frio, mas não acho muito bom você ficar dentro do carro.
- Tudo bem. - Sorri para ele.
Nós descemos do carro e ele entrou pela porta principal do teatro, deixando-me encostado em uma parede, tentando me aquecer com os braços cruzados. Ele demorou dez minutos para voltar e me resgatar do frio, levando-me para dentro de um dos mais bonitos teatros que eu já vi.
As cadeiras eram vermelhas e o teatro possuía três andares adornados com detalhes dourados. O sorriso estampado em meu rosto e o brilho em meus olhos eram visíveis do outro lado do teatro, mas minha felicidade se tornou total quando eu olhei para o palco e notei uma pequena orquestra me observando, além de um piano vago, um grupo de coral, e um maestro de cabelos brancos com um braço atrás do corpo.
Eu os observei e entrei em estado catatônico pela segunda vez no dia. Minhas mãos estavam trêmulas e meus pensamentos se embaralharam. Meu sonho era tocar em uma orquestra e ela estava ali, em minha frente. Eu, talvez, poderia pedir para eles me deixarem tocar o piano de cauda, mas eu só sabia uma música que poderia ser tocada em orquestra e, pelo visto, não ensaiava ela há um bom tempo, não sei como minhas mãos iriam se comportar. Eu não sabia nem se eu ainda era músico. Meu sorriso se desfez.
- Tá tudo bem? - Perguntou o maestro.
- Sim, eu acho.
- Vem, suba aqui no palco. - Disse ele em tom sério.
Eu subi no palco com certa vergonha e levantei a mão cumprimentando a orquestra e a dirigindo para o maestro.
- Prazer, Brendan.
Ele me olhou com um tom sério, parecendo não acreditar no que eu estava fazendo, mas acabou esticando sua mão.
- Alceo. - Nos cumprimentamos. - Você quer tocar alguma coisa conosco? Nós, pelo que parece, não temos um pianista. - Gelei.
- Eu não tenho um bom repertório, digo, acho que a única que eu poderia tocar com vocês é um Noturno que eu conheço.
- O piano é todo seu. – Disse com uma das sobrancelhas arqueadas.
Encarei o piano e um estranho relaxamento percorreu meu corpo. Caminhei até ele e passei a mão, ele era lustroso, refletindo as luzes que provinham do teto e a vontade daqueles que nos observavam. Um piano de cauda inteira, sendo tocado por mim e apreciado por aqueles que sentavam nas cadeiras da arquibancada.
Eu o contornei e sentei no banco, que estava perfeitamente posicionado para mim. Abri a tampa que protegia as teclas e iniciei as sequencias de acordes correspondentes ao Noturno em #Cm de Chopin (no.20). Obviamente, por não ter ensaiado esta música há um bom tempo, meus dedos não se moviam com muita agilidade, fazendo com que eu errasse algumas notas. O maestro me observava com atenção e depois de certo tempo tocando, ele ordenou que alguns violinistas e contrabaixistas tocassem comigo, criando uma bela e diferente harmonia.
A música repercutiu pelo teatro por quatro minutos, instalando-se o silêncio logo em seguida. Eu me levantei do piano e voltei a ficar ao lado de Elliot, observando, com alegria estampada no rosto, a orquestra e o coral a minha frente.
- Há quanto tempo você não ensaia essa música? - Perguntou-me o maestro.
- Bem. - Fiz uma pausa. - Na minha ideia de tempo, cinco dias, por quê?
- Você executou a música como alguém que está a poucos anos aprendendo piano.
- Eu sei. - Desviei o olhar. - Eu iniciei meus estudos há quatro anos.
- Entendo. - Disse o maestro, dando-me as costas.
Eu fiquei parado observado tudo em minha volta. Eu não queria esquecer aquilo, não queria esquecer aquele sentimento. O sentimento de realizar um sonho.
- Brendan. - Uma voz feminina me trouxe de volta ao teatro.
- Oi? - Indaguei, procurando a voz que me chamara.
Do meio do coral uma mulher de cabelos castanho claro, caído até o ombro, ornamentado com uma franja lateral, com olhos escuros e penetrantes, trajando uma roupa escura, adornada com um cachecol, deu alguns passos a frente e me encarou com certa apreensão no olhar, como se estivesse pensando no que seria certo fazer.
Eu a observei, e depois de algum tempo eu me toquei quem era ela. Aquela mulher, dez anos mais velha de como eu me lembrava, era uma das pessoas mais importantes para mim nos tempos de colégio e além. Ela era uma amiga, uma confidente, alguém que eu tinha o maior prazer de aguentar. E agora, depois de um ano sem vê-la direito, eu a encarava. No mesmo palco, com as mesmas pessoas, no mesmo local em que um de meus sonhos se realizou.
- Marta! - Falei em tom alto, correndo em direção a ela.
Os instrumentistas me olharam com certa dúvida na olhar, assim como os cantores que estavam logo atrás dela. Eu desviei de algumas pessoas e, quando cheguei perto de Marta, abracei-a fortemente, sentindo alguns estalos vindos de sua coluna.
- Marta, que saudade, como estás? - Disse, soltando-a.
- Eu estou bem. - Disse ela meio assustada.
- Sério, que bom te ver, que saudade. Nunca pensei que te encontraria aqui em Londres, sério, você merece o melhor.
- Ah, obrigada. - Ela desviou o olhar, chamando minha atenção para as pessoas ao redor.
Todas as pessoas do auditório me olhavam com certo pavor no olhar, de certa forma, surpresos com a conversa que eu estava iniciando. Eu não entendia o que estava acontecendo, mas desconfiava. Aqueles dez anos deviam ter mudado muita coisa em mim e naqueles que eu conhecia. Foi nesta hora que o brilho em meu olhar e o sorriso em meu rosto desapareceram.
- O que está acontecendo? - Perguntei, mirando os olhos daqueles que me olhavam.
- Você não se lembra mesmo né? – Iniciou Alceo. - Eu achei que você estava brincando, e que esta brincadeira estava indo longe demais. Mas, pelo visto, é real. Meu deus. - Ele arrumou o cabelo.
- Como assim? - Perguntei meio receoso.
- Quando eu pedi pra você ficar do lado de fora eu vim aqui falar com eles e expliquei a situação. Seu médico me pediu pra te levar nos lugares que você gostava, pra tentar te fazer lembrar de algumas coisas, utilizando a memória sensorial. Por isso te levei naquele restaurante, por isso passei pelos pontos turísticos e por isso não desmarquei este compromisso, te trazendo até aqui.
- Sim, eu já imaginava isso, mas por que todo semblante de vocês mudou quando fui falar com a Marta? - Olhei para ela.
- É porque nós não deveríamos estar trocando palavras. - Falou Marta.
- Como assim?
- Há três anos, pouco depois de nós nos encontrarmos neste palco, nós tivemos uma discussão. Uma briga bem feia. Desde então, nós não nos falamos mais. Nem uma palavra, nem um gesto, nem um olhar. E quando Elliot entrou aqui e falou o que tinha acontecido, eu, e todos aqui dentro sabíamos o que teria de ser feito. E, depois disso, ou você é um excelente ator, ou realmente sofreu uma valiosa perda. - Ela me olhava com um olhar caído, observando minhas reações e afagando o próprio braço.
- Quer dizer que eu passei um bom tempo sem falar contigo. - Eu abaixei a cabeça.
- Sim.
- E os outros, digo, as outras pessoas que eram importantes pra mim? - Virei a cabeça para Elliot, com os olhos cheios de lágrimas. Ele balançou a cabeça.
- Quando a gente se mudou pra cá, você deixou muita coisa pra trás, inclusive algumas pessoas.
Aquelas palavras foram como um soco pra mim. Eu, Brendan Cincini, uma pessoa que sempre se importou mais com os outros do que consigo próprio, havia abandonado tudo o que ele mais presava e amava, e para que? Por que motivo eu fiz tudo isso?
Meus olhos se fecharam involuntariamente e eu pude sentir as lágrimas quentes escorrerem por minha bochecha. Soluços despertaram de meu peito e a vontade de viver se esvaía de me meu corpo.
Eu caminhei até a frente do palco, sendo observado a todo instante e me virei para o maestro, limpando os resquícios líquidos de meu rosto.
- Eu era o pianista. Não é? Eu era quem ficava sentado e executava as peças neste piano. Não é?
- Sim. - Disse Alceo, abaixando sua cabeça.
- Legal. - Dei as costas. - Um sonho arrancado de minhas mãos.
As lágrimas brotaram voltaram a inundar meu rosto. Eu não queria mais ficar ali.
Dei as costas para todos e desci as escadas do palco, caminhando em direção à saída.
- Brendan, espera! - Gritou Elliot.
Continuei caminhando, sem olhar para trás, torcendo para que tudo aquilo não tivesse acontecido.
- Brendan! - Ele gritou novamente.
Eu atravessei a porta principal e me encostei em seu carro, segurando as lágrimas, esperando que Elliot saísse do Palladium.
- Brendan. - Disse ele, se pondo em minha frente. - Desculpa, não queria te magoar.
- Me leva pra casa. - Foi o que eu consegui dizer. Mas eu sabia que a casa para onde ele me levaria não era casa que eu gostaria de ir.

~X~

- Brendan, por favor, tenta se acalmar. - Pedia Elliot a cada vez que eu abria a boca.
- Me acalmar? Elliot! - O som percorreu o corredor de nosso prédio, antes de Elliot fechar a porta principal de nosso apartamento. - Eu estou em uma vida que não é minha, estou namorando uma pessoa que eu não conheço, abandonei as pessoas que eu amava, tive sonhos tirados de mim, e sou obrigado a escutar você me dizendo pra ficar calmo? - Gritei.
- Elliot, eu... - disse ele com o tom de voz baixo, olhando em meus olhos.
- Você não tem ideia do que estou sentindo. - Diminui o tom de voz. – Você não tem ideia da dor que eu estou sentindo. Me sinto culpado por tudo. Isso não está certo. Essa vida não está certa.
- Mas foi isso que você construiu. Comigo. Nós dois construímos isso.
- Quer dizer que a culpa também é sua por eu ter perdido a memória? - Falei rispidamente. - Eu não te conheço Elliot. Eu te falei isso mais cedo. Eu não consigo nem sentir vontade de te abraçar. Para mim você me foi apresentado hoje. - Uma lágrima escorreu de seu rosto. - Desculpa.
- Tudo bem. - Ele olhou para o chão. - Fome?
Balancei a cabeça de forma negativa.
- Ok, vou estar na cozinha, qualquer coisa.
Ele saiu da sala e eu ergui a cabeça. A sala era extensa, com um piso em madeira cintilante e um enorme tapete sob a mesa. As janelas percorriam toda a extensão do teto ao chão, e uma grande televisão estava pendurada em uma das paredes. Em volta, uma série de quadros enfeitava a parede, mostrando fotos de Elliot com uma pessoa. Um homem, com aparência de vinte e tantos anos, cabelo arrepiado, castanho, roupas de marca e um sorriso no rosto. Sei que eu deveria me reconhecer, mas aquele não era eu.
Eu respirei fundo, retirei aquela grande quantidade de roupa que cobria meu corpo e me sentei no sofá da sala, olhando através da janela e observando a arquitetura do prédio do outro lado da rua. Eu me sentia perdido, sozinho. Aquele mundo não me pertencia, Elliot não me pertencia, nada naquele guarda-roupa, naquela cidade, naquele país, me pertenciam. Eu estava sozinho. Jogado em um canto, sendo coberto pela poeira do mundo, enquanto meu cérebro ria de tudo, planejando o tempo da próxima perda de memória.
Meus olhos estavam inchados, completamente vermelhos, e minhas mãos tremiam sem parar. Minha respiração estava ofegante, flutuando entre apneia e hiper-ventilação. Minha mente devaneava, pensando nas pessoas que eu havia perdido, nos concertos que eu já não lembrava, nas aventuras que tive ao lado de pessoas que não conheço, nas vidas que meus antigos amigos possuíam.
Eu não queria esta vida. Eu não queria viver sem lembrar de dez anos da minha história. Não queria viver sem lembrar de meus erros, de minhas escolhas, de minhas vontades, desejos e anseios. Não queria viver pensando no que perdi, no que deixei de fazer, no que deixei de construir. Aquela vida já não era minha. E eu não fazia questão de fazê-la ser.
Caminhei até a janela e olhei para o escuro céu que cobria cidade. Uma nevasca estava tendo inicio e os moradores do prédio em frente fechavam apressadamente suas janelas. A rua estava deserta, manchada pela neve que se estendia por toda a cidade. Eu não suportaria morar aqui. Não suportaria viver uma vida que me fora tirada.
Toquei a janela, sentindo o frágil vidro que me separava da neve, ficando, logo em seguida, de costas para ele.
Elliot saiu da cozinha e parou no corredor, observando-me, enquanto amarrava um avental preto ao corpo. Eu o olhei e meus olhos voltaram a se umedecer, fazendo-me levar as mãos a eles.
- Elliot. - Disse.
- Sim? - Disse ele em tom baixo.
- Eu não tenho por que continuar aqui. Eu não tenho porque viver neste caos, sem lembranças, sem amigos, sem meus sonhos. Tudo me foi tirado, e eu vejo que faria tudo diferente se eu pudesse.
- Brendan, eu...
- Não adianta, eu não quero viver uma vida em que as pessoas que eu amava não estarão presentes. Peço desculpas, pois o verdadeiro sofrimento será seu.
- Brendan, vem... - Eu não escutei o que Elliot disse, e antes que eu pensasse demais, fechei meus olhos e joguei meu peso para trás, iniciando o estilhaçamento do vidro, seguido do som do meu nome, sendo emitido aos gritos por Elliot.
O chão não estava lá para me segurar, e assim, a queda teve inicio. Sete andares, eu teria tempo para pensar ainda. Abri meus olhos e a Terra parou de girar. Eu estava imóvel no ar, sem conseguir mexer meu corpo, sem conseguir piscar, apenas pensando. Os cacos de vidros pairavam junto comigo no ar, refletindo o brilho das lâmpadas na rua, e o rosto daqueles que observavam. Elliot era um deles. Ele estava de joelhos, próximo à janela, com o braço esticado, como se quisesse me pegar. Ele estava com lágrimas no rosto e isso me magoou. Sei que não pensei nos outros ao fazer o que fiz. Sei que fui, de certa forma, egoísta. Assim como sei que feri, para sempre, a pessoa que mais me amava neste curto ciclo de vida.

Fechei meus olhos e o vento balançou, novamente, meus cabelos. Não sei se minha ação é a certa. Não sei se o que fiz deixará sequelas permanentes no mundo. Mas eu não quero correr o risco de viver com medo do amanhã, preso em um corpo de vinte e sete anos com mentalidade de dezessete, sem aqueles que amo, errando constantemente na forma em que conduzo minha vida. Se eu pudesse eu faria tudo diferente, mantendo minhas ideias, sem ser influenciado, construindo um futuro, onde eu não viveria com remorso. Com medo de que minhas memórias se percam em meio ao preto. Chão.

Transformatur in

Não sei como, nem por que, mas tudo estava úmido, gelado, girando; transformando meu corpo em um pedaço frio de carne, que logo serviria de comida para outros seres menores. Eu enxergava nada, o sol não existia, e o liquido gelado impedia que eu abrisse meus olhos. Eu não entendia o que estava acontecendo.
Meu pulmão clamava por ar, mas eu não podia respirar. Esta era minha única certeza, se eu respirasse eu morreria. O que eu deveria fazer? Esperar o abraço da morte ou lutar mais um pouco?
Não recordo-me de nada anterior a isto. Por que minha mente despertou apenas neste momento? Por que tudo está assim?
Tentei deixar meu corpo imóvel. Impossível. O liquido me arrastava em certa direção. Liquido. Correnteza. O que havia acontecido?
Estabilizei meu corpo na horizontal, no sentido do fluxo, e senti a gravidade me puxando, senti braços me agarrando e vozes sussurrando “Venha. Livre-se deste peso inútil que é a carne. Venha com a gente. Entregue-se à água.”
Não! Eu não podia me entregar. Estiquei meus braços para cima e com ajuda das pernas nadei rumo ao que eu achava ser a superfície. Eu estava certo.
Coloquei a cabeça para fora da água e inspirei o máximo de ar que eu conseguia, permanecendo ofegante enquanto tentava me manter com a cabeça fora d’água.
A correnteza era fortíssima, e o nível de água colossal. Eu ainda estava na cidade, mas a cidade não estava mais lá. Os prédios estavam submersos, com apenas alguns terraços sobre a água, pássaros voavam no mesmo sentido da correnteza e pedaços de material flutuante passavam rapidamente por mim.
Olhei para todos os lados e não conseguia encontrar o fim da água. O que quer que tenha acontecido foi realmente grande.
- Avis!
Aquela voz, longe fraca, mas conhecida, causou-me um arrepio e, com isso, vários flashes de memória surgiram em minha cabeça.
Amigos. Reunião. Festa. Prédio. Comemoração. Novo membro. Bebida. Diversão. Doses. Barulho. Explosão. Janela. Onda. Parede. Rachadura. Impacto. Busca por ar. Preto.
- Ursus! – Gritei. Mas nada recebi de resposta. – Ursus! Piscis! Simiu! Cattus! Aranea! Taurus! Fiber! Vulpis! Linx!
- Aqui. Avis, eu estou aqui!
- Simiu! Onde? – Engoli um pouco de água.
- Aqui!
Girei minha cabeça pra todos os lados, buscando a origem da voz não a encontrei. Continuamos gritando enquanto éramos arrastados pela água até que Simiu conseguiu levantar o braço, mostrando-me sua localização. Nós tentamos nos aproximar, mas a correnteza era mais forte que nossas braçadas, tornando a aproximação uma tarefa difícil e perigosa, devido à velocidade com que pedaços de matéria sólida se aproximavam de nós.
O tempo passou e nossa proximidade não sofreu grande transformação, mas continuamos tentando, até sermos surpreendidos por uma explosão, que rasgou o céu como se fosse um trovão. Nós paramos de tentar nos aproximar e olhamos para cima, buscando alguma coisa incomum.
O céu passou de azul claro para lilás e as nuvens começaram a se agrupar no horizonte, formando uma perfeita circunferência. Outra explosão. As nuvens se aproximavam rapidamente, e era possível sentir a água perdendo velocidade cada vez que eu me aproximava das nuvens. Olhei para o lado em busca de Simiu e nada encontrei. Eu estava sozinho novamente.
A circunferência se aproximou ao máximo e assim que a cruzei, tudo que estava em meu campo de visão sumiu em meio ao ar, dando vida a um som de queda d’água.
Olhei para frente com mais atenção e observei a cascata que me aguardava. Eu não conseguiria lutar contra tal força, deixando meu corpo ser levado enquanto olhava para o lugar onde eu estava, assim que a queda d’água teve início.
O lugar era cercado por uma cadeia de morros, tendo apenas duas falhas. De um lado um vasto oceano podia ser visto e do outro, uma vasta floresta tomava conta da terra, mas não era perfeita, podendo ser visto pequenas casas e uma cidade mais a longe.
Barcos pesqueiros, captureiros, e cargueiros estavam se movimentando pelo lago que ali se formava. Coletando peixe, capturando aves e transportando veículos automotivos.
A queda era longa, e eu certamente morreria caso me chocasse com a água. Eu não sabia onde estava, não sabia como havia chegado ali, e não sabia se meus amigos estavam vivos ou mortos. Eu não poderia ficar arriscando, mas agora seria necessário. Fechei meus olhos e me concentrei. Meu corpo inteiro tremeu e formigou por completo. Um brilho vivo foi emanado e uma forte sensação de calor tomou conta de mim. Abri meus olhos, estiquei minhas asas e voei rumo às ilhas que ficavam no meio daquele lugar.
~~X~~
As ilhas possuíam pequenas casas de madeira, provavelmente de pescadores, com varais de roupas espalhados entre as árvores e crianças correndo pelo terreno.
Fiquei planando pelo lugar, buscando alguma dica de onde eu estava e onde meus amigos poderiam estar. Fechei meus olhos e enviei pensamentos a eles. Eu não poderia conversar nesta forma, mas eles poderiam ouvir os pensamentos que eu permitisse.
- Onde vocês estão? Vocês passaram pelo portal de nuvens?
- Sim, foi tenso, tive que me transformar pra não morrer. – Disse Piscis. – Do nada tudo sumiu e uma cachoeira apareceu em minha frente, obrigando-me e me transformar em um Glaucus Atlanticus. Certo que eu morreria com a queda.
- Então tu estás dentro d’água. – Afirmei. – Cuida com os barcos, vou ver se consigo arrumar uma rota de fuga.
- Sim, pode deixar, e tu também. Eles caçam pássaros aqui.
- Já vi.
- Avis! Piscis! Onde vocês estão? - Gritou Arenea.
- Voando. – Respondi.
- Nadando. – Disse Piscis.
- Onde Avis? Eu estou no topo de uma árvore no meio da ilha e não estou te vendo.
- Eu sou um Cisne branco, não tem como não me ver.
- Mas não estou te vendo.
- Eu também não estou te vendo. – Comentou Taurus. – Pra mim e água se transformou em um pasto, e eu rolei pela grama, estou todo lanhado. Estou em forma humana ainda, olhando para o céu, mas não estou te vendo.
- Como é o lugar que vocês estão? – Perguntei.
Enquanto os três me descreviam o lugar e os outros membros do grupo foram surgindo na conversa. Todos descreveram como haviam chegado ao lugar, caindo de uma cachoeira, caindo do céu, ou se esborrachando com a terra. Descrevendo também o mesmo lugar, os mesmos barcos, mesmas casas, mesmas formações de pedra, mas nenhum conseguia enxergar os outros.
- Isto não é bom. Por que não conseguimos enxergar os outros? – Perguntou Vulpis.
- Talvez tenhamos que tentar voltar sozinhos para casa. Um teste, ou uma divisão por dimensões. Sei lá. – Argumentou Lynx.
- Teste de quem? Digo, não somos subordinados a ninguém, temos que provar nada a ninguém. – Disse Fiber.
- Calem a boca. Tá resolvido, vamos voltar para casa. Cada um por si. Assim a gente testa cada um do grupo. – Argumentou Ursus. – Vocês sabem que ninguém aqui tem poder pra isso, e nem vontade de destruir uma cidade. Alguém realmente poderoso está por trás disso. A gente se encontra em casa. - Todos assentiram e tomaram seu próprio rumo.
Eu permaneci planando por mais um curto período de tempo, olhando para a floresta e tentando me localizar pelo sol. Minha casa ficava na mesma direção que a floresta, a não ser que eu estivesse mais ao sul, mas pela inclinação do sol não acho que isto fosse possível.
Inclinei meu corpo para frente, voando rumo à floresta, e o mundo me pregou mais uma de suas peças. Uma corrente de ar frio passou pelo meu corpo, fazendo-me despencar ao encontro do chão. Abri minhas asas, estabilizei meu corpo e dei um rasante no solo, encostando de leve no limite da ilha com a água.
Eu estava voando baixo de mais, mas não conseguiria voar alto o suficiente antes de chegar perto dos barcos, obrigando-me a enfrentá-los. Os barcos pesqueiros foram os mais fáceis, afinal, podiam fazer nada, mas meu problema seriam os captureiros. Eles eram barcos grandes e possuíam um enorme mastro em seu meio, tendo em sua ponta, uma rede de fios verticais que voam a favor do vento, fazendo com que as aves se chocassem com os fios e se prendessem neles, impedindo-as de continuar o voo e caindo rumo à mão dos tripulantes.
Os fios, uma vez ou outra encontravam minhas asas, mas eu conseguia me livrar deles com extrema facilidade, afinal, eu era um humano no corpo de um cisne. Mas meus problemas não pararam por aí. Um dos tripulantes, notando minhas peripécias, retirou uma espingarda de um baú, apontando-a para mim. Ele mirou e assim que posicionou o dedo para puxar o gatilho outro tripulante bateu em seu braço, desestabilizando a arma e fazendo a bala passar longe de mim, mas, mesmo assim, fazendo meu coração disparar.
Ele deu uma bronca no atirador enquanto apontava pra mim e para o lugar em volta, provavelmente, dizendo que eu não pertencia aquele lugar.
Voltei minha atenção para o caminho à frente e, assim que meus olhos encontraram foco, eu me choquei com a lateria de um navio cargueiro, emitindo um alto grunhido antes de atingir a água. Levantei meu enorme pescoço de dentro d’água e encarei a lateria. Meu corpo doía, mas não o suficiente para me impedir de voltar a voar.
O cargueiro movia-se lentamente pela água, e eu teria de dar uma imensa volta para contornar o barco, fazendo-me optar por esperar pacientemente ele sair da minha frente para que eu pudesse adentrar na área governada pela floresta.
~X~
O sol estava adquirindo tons alaranjados, anunciando o fim do reinado do sol e o inicio da dinastia lunar. Os pássaros começavam e buscar o abrigo de uma dríade e os animais terrestres começavam a reunir o bando, festejando a carne adquirida ao longo do dia.
Eu voei por um longo tempo após me chocar com o navio cargueiro, passando por caçadores, árvores e animais que eu nunca imaginei que pudessem existir. Registrando, uma vez ou outra, aves para meu arsenal de transformações. Mas minha vida não passava por um momento alegre. Devido ao grande esforço causado pela viagem, e a falta de costume de voar longas distâncias enquanto transformado, meu peitoral e asas doíam constantemente, obrigando-me a fazer uma parada, mesmo que eu não pudesse ou quisesse.
Eu ainda não sabia onde estava, e fazer uma pausa em uma situação como a que eu me encontrava não era uma boa ideia. Minha mente estava igualmente cansada, mas eu não poderia parar, não no meio da floresta.
Fechei um pouco meus olhos para tentar relaxar e um forte brilho se fez presente no meu lado esquerdo, chamando minha atenção. O brilho de uma torre inundou meus olhos, despertando-os para um pequeno vilarejo guardado pela floresta. Não entendo como não o vi antes, mas, sem pensar nas consequências que este ato poderia me trazer, inclinei meu corpo e voei rumo a ele, torcendo para haver um lugar decente para eu poder dormir.
As casas eram enormes e as ruas asfaltadas. As luzes eram amenas, emitindo pouco brilho, permitindo aos moradores, olharem as estrelas. Aquilo parecia mais um recanto do que um vilarejo. Um lugar para fugir dos problemas da cidade.
Todos os estabelecimentos estavam fechados e eu não aguentaria voar por mais tempo, obrigando-me parar em cima de um muro que cercava uma grande casa amarela.
Caminhei sobre o muro, posicionei-me atrás de uma árvore, aconcheguei minhas asas ao corpo e dormi sobre forma de ave, torcendo para que ninguém me quisesse no jantar.
~X~
Latidos ecoaram pelos meus ouvidos e um leve murmúrio se fez presente, despertando-me de meu profundo sono. Abri meus olhos de forma lenta e bocejei, abrindo bem o bico. Mirei o lugar de onde estavam vindo as vozes e me assustei, farfalhando as asas.
Um cachorro enorme latia ferozmente em minha direção, mesmo preso do outro lado do pátio e seis pessoas me encaravam, sendo dois adolescentes, dois adultos e dois idosos. Eles me olhavam com certo ar de contemplação, menos os idosos, que me olhavam com certa preocupação.
- Acho que eu nunca tinha visto um cisne. – Disse o garoto.
- É porque eles não deveriam estar aqui nesta região. – Argumentou a garota, retirando uma mochila de suas costas.
- “Acho que escolhi a ave errada.” – Pensei.
- O que te trás aqui? – Perguntou o senhor.
- Como assim papai? É uma ave selvagem, não vai te entender. – Disse o adulto.
- Cale a boca. – Ordenou o senhor, erguendo uma de suas mãos. – Me diga, o que te trás aqui? – Inclinei minha cabeça para a esquerda.
- Não precisa ter medo. – Disse a senhora.
- Acho que vocês estão ficando loucos. – Falou a mulher.
Levantei uma de minhas asas e apontei para a cachorro que continuava a latir.
- Não precisa se preocupar. Vamos, nós queremos te ajudar, te darei roupas e comida.
- Papai, o que o senhor andou tomando?
- Nada meu filho incompetente. – Resmungou o velho. – Você nunca acreditou em mim, agora está aí a prova. Ele não vai ir muito longe, não do jeito que está. Ele não tem escolha. Ou fica e nós o ajudamos ou ele corre o risco de morrer de exaustão no meio do caminho. – Olhou para mim.
- Papai...
Antes que o adulto pudesse terminar a frase eu pulei do muro, que era mais alto que os homens, e abri minhas asas antes de chegar ao chão, evitando acidentes. Fechei meus olhos e a sensação de formigamento teve inicio. O calor tomou conta de mim, junto com uma forte coceira em cada ponto onde havia penas, e meu corpo começou a brilhar, abandonando a silhueta de cisne e dando forma a uma silhueta de homem. O brilho tornou-se mais fraco e eu emergi da fraca luz. Um homem novo, pálido, de olhos verdes e cabelos castanhos, levemente longos; com o peito e os braços marcados devido a extensa viagem em forma de cisne; completamente nu.
A mulher adulta tapou o rosto e os dois adolescentes arregalaram os olhos, mantendo-os focados em mim, provavelmente pelo choque da transformação, deixando-me, de certa forma, constrangido. A senhora, que dera as costas para mim assim que eu desci do muro, voltou ao local onde estávamos, entregando-me uma toalha azul bebe, que utilizei rapidamente para me cobrir.
- Como assim? – Disse lentamente o garoto.
- Desculpe pelos meus netos, eles nunca acreditaram nessas coisas.
- Sem... – Minha voz falhou. – Sem problemas. – Sorri.
- Venha, vamos comer. – Disse ele me pegando pelo pulso e me fazendo entrar na grande casa.
- Com licença. – Cochichei, olhando para a decoração extremamente cara que eles mantinham na casa.
Nós caminhamos pelo corredor principal e entramos na única porta a esquerda, adentrando em uma enorme cozinha onde uma secretária trabalhava de forma rápida sobre o fogão.
- Sente-se. - Disse o senhor, apontando uma das cadeiras ao redor da mesa.
Assim que me sentei, a secretária colocou um copo de leite em minha frente e uma bandeja com cookies e frutas, despertando ainda mais minha vontade de comer.
- Preciso perguntar. Como você fez aquilo? Digo, se transformar? – Perguntou o Adolescente. – Ah, eu sou Brendan.
- Deixem-no comer primeiro. – Disse o senhor. – Me chamo Elm.
- Tudo bem. – Disse, limpando a boca com um guardanapo. – Podem me chamar de Avis. – Solucei. – Eu sou um guardião, por isso posso me transformar.
- Jasmine. – Disse a garota, levantando a mão direita. - Pode fazer mais coisas? – Perguntou com certo brilho no olhar.
- Posso, mas não neste estado. Digo, seria imprudente.
 - Eu estou chocada. – Disse a mulher.
- Brendam, pegue uma roupa para ele, ele não pode ir embora só de toalha.
- Não precisa. – Contradisse. – Eu vou voando para casa, tu só vai perder roupa.
- Não. – Disse Elm meio bravo. – Há alguns anos uma vidente me disse que isto aconteceria e disse-me para ajudá-lo. Eu vou emprestar um dos nossos carros e um GPS, assim você se poupa e termina o que tens de fazer.
- Eu não posso aceitar isso.
- Mas vai. – Afirmou Elm com um soco na mesa.
O silêncio se fez presente na mesa e Brendam saiu da cozinha, voltando logo em seguida com uma calça, camiseta, cueca, meia e tênis parar mim.
- Espero que sirva. – Disse Brendam.
- Avis, pode ficar com meu carro, é o preto que está parado lá na frente. Nós não teremos dificuldade de comprar outro. – Disse Elm, me passando a chave do carro.
- Papai, o senhor não acha que...
Antes do homem terminar sua frase os latidos do cachorro voltaram a se fazer presente, fazendo todos do recinto ficarem em silêncio. Eu olhei para todos, pensando em quão boas aquelas pessoas estavam sendo, quando uma voz surgiu dentro de minha cabeça.
- “Estou ferrado.”
Levantei de forma brusca da mesa, já vestido, e corri até o lugar onde antes eu estava, encontrando o cachorro latindo ferozmente para um macaco sobre o muro. A família toda correu atrás de mim e em poucos segundos eles já estavam parados perto da porta, observando o pequeno filhote de gorila parado sobre o muro.
- Simiu! – Falei alto, me aproximando dele.
- “Ainda bem, achei que ia morrer tentando voltar pra casa.” - Aproximei-me o máximo que consegui e Simiu pulou em meus braços, ficando de barriga para cima, como se fosse um bebe. – “Eu não vou me transformar de volta em humano. Se eu fizer isso, vai demorar um bom tempo pra eu voltar a poder virar macaco.”
- Sem problemas, estas pessoas estão me ajudando, ajudarão você também.
- Ele também é como você? - Perguntou Jasmine.
- Sim, mas ele está muito cansado pra virar humano. As transformações cansam muito, e ele, provavelmente, está caminhando desde ontem. Eu tive uma noite de sono, mas a distância que ele percorreu foi igual a minha, e, por terra, é bem mais complicada.
- Tudo bem, vamos alimentar ele assim mesmo. – Disse Elm.
Nós perdemos algumas horas do dia com eles me conhecendo mais e eu conhecendo mais eles, enquanto eu alimentava Simiu como se fosse meu bebe.
O dia passou e o reinado do Sol começava a ter seu fim. Assim como nossa estadia na casa dessas pessoas que nos acolheram tão bem.
- Espero que vocês nos visitem algum dia. – Disse Elm, me ajudando a colocar o adormecido Simiu no banco de trás do carro.
- Visitaremos. Vocês foram muito gentis conosco. Teremos de retribuir algum dia.
- Antes de vocês partirem, eu queria lhe dar uma coisa. Pode ir lá dentro comigo?
- Claro.
Fechei a porta de trás com Simiu lá dentro e caminhei com Elm até a cozinha da casa. Lá ele abriu um armário chaveado e retirou uma caixinha, entalhada com runas, pegando, de dentro dela, uma corrente com um pingente em forma de ampulheta.
- Isto vai ajudar vocês. Não sei como, mas vai. Eu sinto a magia dele, eu só não sei como usar, espero que você consiga.
Ele não estava errado. Mesmo sem tocar no pingente eu sentia o poder que ele carregava, mas nem mesmo eu conseguiria decifrar rapidamente sua função.
- Obrigado Elm. – Disse, colocando o pingente no pescoço. – Você é muito bondoso, obrigado. - Elm sorriu e nós voltamos para o carro, conversando sobre as peças que a vida pregava.
A rua, que antes estava vazia, possuía mais um carro, igualmente preto, parado atrás do veículo que Elm me dera. Eu pouco liguei, até caminhar rumo o automóvel e olhar para dentro dele, pelo vidro traseiro, notando que Simiu não estava mais lá. A porta estava entreaberta e as rodas furadas. O pânico tomou conta de mim.
Eu olhei para os lados e notei a preocupação nos olhos de Elm também. Aquele carro, atrás do nosso, ele tinha que estar lá. Os familiares de Elm apareceram no portão e ele os informou do acontecido. Eu caminhei até o carro de trás e olhei pelo vidro traseiro. Ele estava ali. Simiu estava ali.
Tentei abrir a porta, mas não adiantou, ela estava trancada. O motorista, careca, com óculos escuros e terno, olhava para frente com um ar sério, como se eu não estivesse ali. Fiquei com raiva de tudo e golpeei o vidro. Nada. O motorista riu. O carro era blindado.
Dei um passo para trás, tomei fôlego, concentrei-me em meu punho e golpeei o vidro mais uma vez, que explodiu em vários pedaços e, de relance, pude ver a cara de pavor do motorista. Peguei Simiu e abracei-o contra o peito, correndo para longe do carro.
O motorista desceu do veículo e correu atrás de mim, o mais rápido que podia. Eu não tinha para onde ir. O carro estava inutilizado e a família de Elm estava paralisada com a situação. Eu não tinha outra opção.
Respirei fundo, abri os olhos já transformados e fiz uma coisa que nem eu achei que conseguiria. Soltei Simiu no meio da transformação e antes dele chegar ao chão agarrei-o com minhas garras, sem machucá-lo, disparando rumo ao céu em forma de uma Harpia, com mais de dois metros de altura. Simiu acordou no meio da subida e eu o tranquilizei, mentalizando o que havia acontecido. Estabilizei meu corpo com certa dificuldade e coloquei Simiu em minhas costas, planando de volta para a floresta e procurando a corrente de ar quente que levaria a mim e Simiu para casa.

Preso pela Verdade

  Vinte horas, um grupo, composto por oito pessoas, se aproxima de uma agencia bancaria e quebra, com um martelo, os vidros laterais, adentrando no local e furtando uma grande quantidade de dinheiro. Os alarmes e câmeras de segurança da agência não estavam ligados, apesar de ainda haver luz nas proximidades. Fator que dificultou a ação da polícia, que recebera ligações anônimas informando sobre o assalto.
  Os dias passaram e as investigações prosseguiram. Eles recolheram depoimentos e retratos falados, divulgando-os em redes de televisão, internet e jornais. Duas semanas se passaram, até que, em uma nova tentativa de assalto, o grupo fora pego, entretanto, com um número reduzindo de integrantes, apenas cinco.
  “Silêncio!” gritou o juiz enquanto batia com seu martelo na mesa a sua frente. “Se nos contares onde estão os outros três componentes, diminuiremos sua pena” disse o juiz olhando para um dos acusados, que se levantou e falou rapidamente “Eu nunca trairei meus companheiros”. “Isso já não importa mais” disse o líder da quadrilha “Eles estão mortos, eu mesmo os matei após concluírem seu trabalho” continuou. “Qual parte do trabalho?” questionou o juiz.
  “Você deve ser um homem muito culto” iniciou o líder da quadrilha “Já deve ter frequentado teatros e apresentações protagonizadas por orquestras, notando que, em uma orquestra, cada indivíduo possui uma função diferente e que, quando unidos, conseguem atingir a perfeição musical.” O juiz olhou-o mais sério. “Conosco não é diferente” continuou “Somos parte de uma peça maior que, quando executada por completa, atingimos os objetivos, ou, a mais bela sinfonia.”
  “Por que os matou?” perguntou o juiz com uma maior impaciência. “Dinheiro” respondeu o líder “Não é esta a meta das pessoas? Conseguir dinheiro?” fez uma pausa e ajeitou o cabelo “Veja bem, quando o dono de um posto de gasolina baixa seus preços para atrair mais clientes e isto faz com que os outros postos ao redor sofram um prejuízo, e a conversa não adianta, só para constar, mata-se o sujeito como aviso para os herdeiros e tudo se resolve. Não é diferente conosco. Eu os matei para sobrar mais dinheiro para mim” fez uma curta pausa “Imagine o bem que faria para a população se nós matássemos todos os corruptos e os que merecem morrer?” “Você seria morto” completou o juiz. “Sim!” gritou o líder “E morto por um de meus capangas” continuou. “Onde você quer chegar?”
  “Como já lhe disse, me inspiro nos grandes. Roubo da plebe para satisfação pessoal. Ou, no seu caso, julgo erroneamente os culpados que possuem dinheiro para satisfação pessoal.” O juiz se levantou irritado e olhou em seus olhos. “Que assim seja, condenado por roubo, homicídio e desacato a autoridade.”

Cá estou em minha cadeira pensando nos fatos da vida.

Há tempos não escrevo algo decente, condizente com minha realidade.
~Qual realidade? Aquela que penso viver ou aquela que imagino?~
Minha perda de interesse nos fatos mundanos me distanciam dos momentos de sanidade

Fico sentado me distraindo com códigos binários e fugindo do, dito, real; aliviando as tensões causadas pela falta de interesse no futuro e adjacentes.
Perco-me entre um emaranhado de palavras escritas em tinta de baixa qualidade estampadas na capa de um livro alta capacidade.
Devaneio entre pensamentos incoerentes e insanos, repleto de sonhos complicados de acontecerem, talvez por não ter tempo, talvez por ser incapaz.
Esfrego os olhos na tentativa de dissipar algumas lágrimas, tentando me livrar de incomodações que sismam em me perseguir; problema minaz.

Abraço travesseiros na tentativa de aliviar a falta de um prazer carnal
Imagino situações com certo alguém, na tentativa de um prazer imaterial
~Carência, lembranças de um passado~

Fico me perguntando quando tudo mudará, mas como isto há de acontecer se não tomo as devidas atitudes?
~Como se faltasse vontade. Como se faltasse competência. Como se este fosse meu último dia de chuva. Como se este fosse meu último dia de vida. Como se eu portasse uma passagem só de ida.~

Sei lá né.

Hoje, ao levantar após uma explosão em REM, fui até a janela e vi o sol inundar a cidade em minha frente. Lembrei-me de todo este ano, acordando antes do Astro Rei para ir à uma sala sem janelas, apenas com ares-condicionados.
Quanta coisa eu já perdi por ter tido esta escolha? Quanta coisa já deixei de viver devido a escolhas? Ganho uma coisa, mas perco outra.
Os carros transitavam com velocidade pela avenida. Pessoas ocupadas, focadas apenas em chegar ao trabalho, ou voltar dele, ou qualquer outro objetivo. Eu perco um mundo indo para onde vou. Perco uma vida em movimento. Perco o nascer de novos prazeres e metas. Perco a vontade de continuar vivendo. Até porque eu fico toda a manhã dentro de um retângulo, me divertindo na internet e nos mundos particulares.
Mas acho que, depois de hoje, encontrei um desejo.
Quero acordar cedo e ver a cidade se levantar, vê-la acordar. Para depois, tranquilamente, me arrumar e sair rumo minhas metas, rumo aos meus sonhos, rumo minhas vontades.

Tudo que existe, e existiu, surgiu na forma de um sonho

Às vezes eu penso que meus sonhos são impossíveis de alcançar. Como se tudo estivesse fora de meu alcance, ou precisasse de um tempo maior para ser feito, algo que eu não tenho.
Outubro já está chegando e isso só me apavora. Tenho tocado piano, assim como tenho mentido para mim. Não acho que eu esteja em um nível, relativamente, bom para passar na prova prática e cursar a faculdade de Música. Tudo bem que eu tenho uma segunda opção, mas é complicado. Muito complicado. Não sou obrigado a passar de primeira, mas sofro com a pressão psicológica exercida sobre mim. Pressão que eu mesmo me imponho. Isso me destrói.
Mas, tudo na vida surgiu como um sonho, não? Bem, resta-me sonhar e continuar tentando/mentindo para mim.

Portas e Portas

Frequentemente deparo-me com um vasto corredor repleto de portas.
Portas retangulares esculpidas da mais fina madeira, com a mais nobre paciência.
Portas, geralmente, retangulares, com pequenos adornos esculpidos na madeira.
Adornos simbólicos, representando emblemas fundamentais, marcos de uma história.
História mal contada, passada pela voz falada e narrada pela voz pensada.
Voz grave e rouca, conquistada por anos de vivência com as mais nobres pessoas.
Nobres há muito esquecidas por aqueles que nos cercavam, esquecidas pelas areias do tempo
Tempo engolidor de tudo, o triste fim de um louvor, o triste fim da mais fina dor.
Dor existente nos corpos, recheados de amargura e tédio, um mundo em perdição.
Mundo dotado de solidão, composto de ideias abstratas e ecos de um passado qualquer.
Passado assombrado por memórias relutantes de fatos não esquecidos.
Memórias com finais tristes, memórias com finais felizes, memórias, chave de algumas portas.
Portas retangulares esculpidas da mais fina madeira, com a mais nobre e instável paciência.

Ingrato

Quando algo que possuí e guardas com o maior respeito é tirado de você, a pessoa, que cometeu tal ato, não pode se dar o luxo querer que olhes para ela com respeito.

Me chamaram de ingrato por isto.

Posso ser. Talvez eu esteja agindo de forma irracional. Talvez eu devesse entender os motivos que levaram a pessoa a fazer tal atrocidade. Não. Talvez.

Não consigo mais olhar em seus olhos. Respostas curtas. Não consigo mais conversar. Desvio de olhar.

Sinto raiva. Ódio, quem sabe. Como perdoar alguém que te tirou uma das poucas coisas que mais presava dentro de casa?

Preciso sair daqui. Este quadrado, esta coisa que chamam de casa, não me sinto mais parte desta coisa que, há anos, teimam em chamar de família.

O mais interessante será quando, semana que vem, esta coisa voltar para mim, que sabe. Não conseguirei perdoar, pois, caso volte, será pelo fato de eu ter incomodado o suficiente para isso, e não por vontade deles.

Afinal, mesmo com tudo o que eu ganho, sou um ingrato.
Afinal, o dinheiro é o maior bem que podem me dar nessa casa.
Felizmente tenho meus amigos que, ao invés de presentes, me dão abraços e carinho.

Minha família não está neste quadrante
Ela está espalhada pelos bairros
Longe destes meros ignorantes

Caminhando contra o vento

Não sei o que pensar, não sei o que fazer, nunca soube o que sentir. Estou aqui, caminhando por uma estrada escura cuja iluminação precária de nada adianta. Caminho por uma estrada de asfalto, dura e áspera. Sei disso, pois já me machuquei em uma de minhas caídas corridas. Nada agradável.
Caminho sem um objetivo, sem uma meta, sem uma prioridade. Caminho sonhando acordado, ignorando os buracos abaixo de mim, ignorando os próximos que virão.
Não sei há quanto tempo estou andando. Já passei por muitas casas, muitos animais, muitos terrenos, muitos pedestres, mas nenhum me chamara atenção. Percorro este caminho, pois não há mais o que fazer. Percorro-o, pois não há mais como voltar.
Paro. Coloco a mão sobre a sobrancelha. Forço os olhos. Não há fim. Minha caminhada dará em lugar nenhum. Volto a andar.
Uma vez me disseram que a vida era movimento e que parado eu não devia ficar. Acho que é isto que me motiva a caminhar. Não sei. Talvez seja outra coisa. Quem sabe?
Um dia eu tento encontrar o motivo que me faz caminhar. Um dia eu tento encontrar algo com o que me motivar.

Sonhos e pesadelos - Lembranças de uma vida.

A ideia de ver teu rosto, ver teu sorriso, ver tuas roupas. A ideia de escutar tuas palavras, olhar nos teus olhos, tocar na tua pele. Ideias e vontades que costumam me atormentar antes de entrar no mundo dos sonhos. Ideias que eu tento controlar, tento manipular, simples ato de engaiolar.

Sofro com a ideia de ter que me afastar, criar barreiras, talvez, até, te matar. Sofro com minhas lembranças de um passado distante, em que nós éramos felizes, e deixávamos tudo em nossa volta perfeito. Sofro com as mágoas que causei, com os erros que cometi e com as ilusões que invoquei. Sofro por não te ter mais perto, por não poder mais te tocar.

Recordo-me de quando dissestes que não se afastaria, que eu era importante, que minha amizade era, de certa forma, relevante. Hoje nós não nos falamos. Deixamos de cumprir promessas feitas de forma involuntária. Para quê? Para apenas um dos lados ficar se martirizando com os fantasmas do passado? Para apenas um dos lados ficar se martirizando com imprecisão do futuro? Para quê?

Não devia ter me apegado. Eu não devia ter idealizado.

Agora, deitado novamente em minha cama, começo a relembrar antigas discussões, antigas conversas, antigos abraços, antigas ideias. Nada disso possui um sentido, não sei por que sismo em recordar, não sei porque tu ainda é importante para mim. Mais uma marca, mais uma cicatriz em minha alma.

A realidade começa a se misturar com o desconhecido. Os sonhos começam a me engolir. Morfeu finalmente chegou. O que me espera esta noite? Sonhos ou pesadelos? Lembranças de uma vida.

O Passado