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O tempo de um descanso na mesa em frente

Moça dos cabelos castanhos
Aflição é seu sobrenome
Moça do chinelo alaranjado
Estás você aguardando algum homem?

Sorri com o canto da boca
Mira seres a trabalhar
Chacoalha ritmicamente o celular
Observa com alegria as pessoas a conversar

~x~

Água esquecida por uma mulher descuidada
Acompanhada de uma sacola, igualmente amassada
Moça da limpeza, não leves tais objetos
Mantenha-os em minha visão
Mantenha a minha admiração

~x~

Pessoas na vitrina a olhar
Olhando os livros, a capa observar
Em que mundo vocês vivem?
Com que mundo vocês sonham?

Estranhos a admirar
Livros na estante, de mortos a andar

Estranhos miradores
Que duvida cruel ao comprar
Este, esse, aquele
Como posso escolher
Se nem mesmo a criança eu consigo entreter?

Vivendo em um mundo que não dá pra entrar

Vivendo num mundo que não dá pra entrar.

Ele atou minhas mãos ainda mais forte do que antes e me fez olhar em seus olhos. O pânico tomou conta de mim. Os olhos cor de fogo me encaravam, era meu fim, não adiantava lutar mais. Ele retirou do bolso um revolver e o apontou para minha testa. Meu coração parou e minha respiração falhou. Fechei meus olhos. Um barulho metálico. Era o fim. Uma explosão.

~X~

Meu corpo estava suado e minhas mãos tremiam. Minha mente ainda acreditava que tudo aquilo havia sido real, mas eu sabia que havia sido apenas um sonho, um pequeno pesadelo. Minha respiração oscilava, fazendo-me ora entrar em apneia, ora buscar mais ar do que aguentava. Meus olhos estavam fechados, talvez por falta de coragem de enxergar o mundo, por medo de que aquilo tudo que eu vivi no sonho tivesse, de alguma forma, virado realidade.
Respirei fundo, tentando me acalmar, e um braço se pôs em volta de mim, abraçando-me de forma aconchegante, como se buscasse me proteger. Mas não foi este o resultado. Meu coração disparou ainda mais do que quando eu acordei do sonho. Minha respiração se tornou mais pesada, meus músculos se contraíram e minha mente se tornou mais ativa, enchendo-me de pensamentos.
Eu era um adolescente que morava com os pais e não dividia a cama com ninguém, principalmente pelo fato de estar solteiro.vNão bebia, não fumava e não usava drogas, tornando impossível que eu, por uma overdose, perdesse alguns pontos de minha memória. Eu não havia saído, não havia sofrido um acidente, o que estava acontecendo?
Olhei para o lado, após alguns segundos, notando que a pessoa ao meu lado não esboçava sinal de estar acordado, e me deparei com um homem, adulto, com cabelos loiros e curtos, dormindo de boca aberta. Meus olhos se arregalaram e eu me soltei de seus braços abruptamente, buscando a parede para me apoiar.
Meu companheiro de cama acordou assustado e me encarou com um olhar de preocupação, buscando entender o que estava acontecendo.
- O que foi? Tá tudo bem? - Disse ele entre um bocejo.
Olhei para o lado e fiquei ainda mais tenso. Eu não conhecia aquele lugar. Eu não sabia onde e com quem estava. O quarto era grande, possuía dois armários, uma cama de casal encostada na parede, uma televisão, um piano digital e uma escrivaninha repleta de partituras. Mas aquele lugar ainda continuava ausente em minhas lembranças.
- Brendan, está tudo bem? - Ele me olhou mais preocupado do que antes.
Respirei fundo.
- Talvez você... - Minha voz estava mais grave. Recomecei. - Talvez você ache estranho o que eu vá te perguntar agora, mas como eu lembro de nada, terei de perguntar. Quem é você?
Ele se sentou na cama e olhou em meus olhos, deixando a boca levemente aberta.
- Como assim, Brendan? Como assim não se lembra?
- Eu não sei quem você é, eu não sei onde estou, não sei nem que dia é hoje. - Olhei para minhas mãos. - E por que minhas mãos estão com manchas de sol? - Olhei para o loiro. - Pensando bem, por que eu consigo te enxergar tão bem?
- Brendan, você tá me assustando.
- Eu estou te assustando? Eu acordo na cama com um cara que eu não conheço, enxergando bem sem óculos e com a pele envelhecida uns dez anos, e eu que estou te assustando!?
- Tá, calma. - Ele olhou para o colchão.
- Calma? Desculpa, quem precisa de calma pra pensar é você que acha que eu estou mentindo. Qual seu nome mesmo? - Sua atenção voltou para mim e sua expressão passara de preocupado para estado de choque, levando certo tempo para falar. Aumentando mais minha insegurança com ele em minha suposta cama.
- Elliot, meu nome é Elliot. E nós dois somos namorados. Está é nossa casa, nós moramos juntos, e eu estou no seu quarto, já que você sempre disse que quando fosse morar sozinho não gostaria de dividir quarto.
- Namorados? - Falei desacreditado, porém, relaxado. Se nós realmente fossemos namorados, eu não corria perigo ao lado dele.
- Sim, por quê?
- Não me lembro de ter começado nada com alguém.
- Do que você lembra? - Ele passou as mãos pelo cabelo.
- Minha última lembrança. É do dia vinte e sete de outubro e eu fui dormir de madrugada, após tocar, pela primeira vez, em um bar da cidade baixa.
- Pela primeira vez? - Disse ele de forma séria.
- É, eu nunca tinha tocado antes.
- Brendan. - Disse ele tentando segurar uma das minhas mãos, mas eu a retirei antes do toque. - Isso faz dez anos. - Disse, voltando a posição anterior e me olhando nos olhos.
O mundo parou de girar para mim. Tudo se tornou mais devagar e minha mente deu início a uma forte inspeção de memórias. Flashes de memórias que eu nunca imaginei que ainda existissem em meu cérebro repercutiram por meu consciente, mostrando-me imagens de minha infância, de meu colégio, de meus amigos, de meus ensaios, de meus planos e de minha apresentação, mas nada após ela, nada do que se passara nos últimos dez anos.
Levantei com só salto da cama e comecei a abrir as portas dos armários rapidamente, sem me importar com que Elliot pensaria, encontrando na última porta o que eu procurava: um espelho. Olhei meu reflexo e entrei em estado catatônico, olhando fixamente para frente. Eu possuía dezessete anos há uma noite, e agora, possuía vinte e sete. Meu cabelo estava curto, com indícios de um topete a frente, meu corpo estava levemente marcado e eu enxergava perfeitamente sem o auxilio de óculos. Minha pele estava levemente bronzeada e algumas manchas que eu não possuía encontravam-se por meu corpo. Virei minha cabeça e olhei para Elliot.
- Que dia é hoje?
- Dezesseis de dezembro de dois mil e sete.
Olhei para os lados, buscando respostas que nunca teria e recuei alguns passos, sentando na cama. Inclinei meu corpo para frente e apoiei minha cabeça em minhas mãos, deixando que lágrimas escorressem por minha face.
- Por que isso tá acontecendo? Por que eu dei este salto temporal? Ou pra você, por que eu perdi minha memória?
Eu continuei com minha cabeça apoiada em minhas mãos e senti a cama se mexendo, seguido dos braços de Elliot me envolvendo. Eu não o conhecia, mas um abraço, até o de um estranho, naquela hora, era a melhor coisa que eu poderia pedir.
- Brendan, eu não consigo acreditar em tudo isso, mas não acho que você seja um ator tão bom pra me pregar uma peça assim, tão convincente. Também sei que, se for verdade, será difícil para você acreditar em mim, mas, por favor, vamos comigo a um médico. O dia está ficando claro e nenhum de nós irá conseguir dormir agora. Por favor.
Eu levantei meu tronco, obrigando Elliot a retirar seus braços de mim e o encarei com meus olhos inchados por ter chorado. Observei que seus olhos também se encheram de lágrimas, mas nada fiz a não ser me levantar da cama e olhar para ele.
- Tudo bem, só me diz onde estão minhas roupas e onde é o banheiro, preciso de um banho.

~X~

- Bota uma roupa quente. - Gritou Elliot do lado de fora do quarto.
Seguindo seu conselho, vesti-me com as melhores roupas que encontrei no armário que Elliot dizia ser meu. Meu estilo havia mudado completamente nestes últimos dez anos, mas isto não me impediu de encontrar uma camiseta preta no fundo do armário, uma calça preta, um sobre-tudo curto, e um cachecol longo.
Nós caminhamos pelo Hall principal do prédio, cruzando por pessoas que eu nunca vira na vida, até chegar à porta de saída do prédio, onde Elliot parou e me encarou. Ele colocou a chave na fechadura e abriu a porta, revelando uma rua branca, coberta por neve, onde pessoas e carros passavam de forma rápida e apressada.
- Sabe onde nós estamos?
- Brasil com certeza não é. - Afirmei, olhando com certo brilho no olhar a neve que caía em minhas roupas. Era a primeira vez que eu via neve.
- Bem-vindo a Londres.
- Londres! - Falei mais alto que deveria, atraindo atenção de alguns pedestres mais próximos e fazendo Elliot sorrir um pouco.
- Sim, Londres, nós nos mudamos pra cá há um tempo, cinco anos. Antes disto nós moramos um pouco em Nova Iorque.
- Meu deus, quem de nós é o rico?
- Eu. – Ele riu. - Vem vamos logo para o neurologista. – Disse, puxando meu braço para acompanhar as largas passadas que ele dava.

~X~

- Senhores, desculpem-me pela demora. A ressonância magnética não apontou nenhuma anomalia em seu lobo frontal, parietal, temporal e occipital, está tudo em ordem. E os exames posteriores não apresentaram nenhuma deficiência nos contatos sinápticos. Mas isso me preocupa. Eu nunca tinha visto um caso como este. O que me leva a criar várias hipóteses, uma mais improvável que a outra.
- E tem alguma chance de eu recuperar minhas memórias? - Perguntei, arrumando a camisa.
- Como eu disse, não há lesões. E nós não sabemos como recuperar uma memória, mesmo com este espaço de dez anos, nós não avançamos muito na área cerebral.
- Ah, tudo bem. Obrigado doutor. – Falei meio deprimido.
- Senhor Brendan, você se importa se eu falar a sós com Elliot?
- Não, tudo bem.
Cumprimentei o Doutor e dei as costas à sala, caminhando pelo corredor onde algumas pessoas aguardavam sua consulta. Respirei fundo e me direcionei a janela, fazendo uma das coisas que eu mais gostava, observar uma cidade em movimento.
O tempo passou vagarosamente durante o período em que Elliot permaneceu falando com o neurologista, e isto não me fez bem. Comecei a pensar em tudo que perdi ao longo dos anos. A faculdade que eu teria de refazer, os amigos que eu abandonei nas areias do tempo, as viagens que esqueci, as histórias que publiquei, os CDs que gravei, a banda que formei, quer dizer, isso se eu tiver feito alguma coisa destas.
Lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto novamente e pequenos soluços emergiram de meu peito. Eu estava com medo. Pela primeira vez em muito tempo, eu sentia o pavor tomar conta de meu corpo. Eu estava sozinho, perdido em um mundo desconhecido, vivendo em um tempo sumido.
- "Perdido num mundo que não dá pra entrar."
A voz de Elliot despertou-me de meu transe, fazendo-me, novamente, secar as lágrimas de meu rosto. Ele ficou ao meu lado, olhando o movimento pelo vidro, mas eu evitei olhá-lo.
- Eu não entendia o que isto significava quando eu te escutava cantar. Agora eu entendo. E me sinto inútil por não poder fazer nada pra te ajudar.
- Desculpa. - Disse lentamente.
- Pelo quê?
- Não sei ao certo. Você falou que nós éramos namorados, e eu deveria te abraçar, te beijar, te amar, mas eu não consigo. Não consigo te tocar, mal consigo te olhar. Desculpe estar te dando trabalho.
O silêncio pairou no ar e nós ficamos encarando a cidade, respirando fundo e, eu, fazendo força para não chorar.
- Não. - Ele fez uma pausa, fazendo-me olhar em seus olhos. - O único trabalho que você vai me dar é o de tentar te reconquistar. E eu sei que vai ser difícil, já que na primeira vez não foi nada fácil. - Rimos. - Vem, vamos comer.
Elliot me pegou pelo pulso e me arrastou para fora do prédio onde estávamos, levando-me para almoçar em, segundo ele, um dos meus restaurantes preferidos.

~X~

- Aqui está seu troco.
- Acho que vou vomitar. - A mulher do caixa me olhou com os olhos arregalados
- Ei, vomita lá na rua então, não dá trabalho para o pessoal. Ninguém mandou comer tudo aquilo. - Disse Elliot entre risadas.
- Mas estava tão bom. Acho que vou vomitar pra comer de novo.
- Que nojo!
Nós saímos do restaurante e caminhamos até seu carro, fazendo certo esforço nas várias vezes que eu perdia o equilíbrio devido à neve, obrigando Elliot a me segurar.
- Pronto para mais uma aventura?
- Não dá pra dormir não?
- Não, quero te mostrar um lugar especial.
- Outro restaurante?
- Uma vez gordo sempre gordo, hein?
- Gordo, mas gordo do bem. - Fiz uma careta, rindo logo em seguida.
O sol estava escondido atrás das nuvens e a neve caía de forma amena, possibilitando o trânsito dos veículos e pedestres naquele inicio de tarde. O "London Eye" estava parado, mas isto não retirava em nada sua beleza. As luzes de cada cabine estavam acesas, criando um contraste com o escuro céu que pairava sobre nós. O Palácio de Westminster estava coberto de neve em seu topo e o Big Bang anunciava o inicio do décimo quinto ciclo diário. O contraste da construção com o branco absoluto era incrível, realçando detalhes que eu nunca imaginei que iria observar.
As pessoas caminhavam nas ruas, munidas de roupas, trajando gorros, cachecóis, capas aveludadas, luvas extremamente grossas, e roupas que engordavam até o mais magro pedestre. Alguns eram mais atrevidos e circulavam pela cidade com suas bicicletas dentro da ciclovia. Meus olhos brilhavam e eu não continha meus sorrisos enquanto olhava para fora através do vidro.
- A primeira vez que a gente veio aqui você fez as mesmas caras. É engraçado.
- Desculpa, mas, pra mim é a primeira vez que eu vejo neve e Londres.
- Tudo bem, eu que não me acostumei com isso.
- Não te culpo. - Fiz uma pausa. - Para onde estamos indo?
- London Palladium.
- O que é o London Palladium?
- Você vai ver. - Elliot encostou o carro e eu pude ver as letras douradas que enunciavam o "Palladium". - Vamos descer. Eu vou entrar ali e te peço para me esperar aqui fora. Desculpe por te fazer esperar no frio, mas não acho muito bom você ficar dentro do carro.
- Tudo bem. - Sorri para ele.
Nós descemos do carro e ele entrou pela porta principal do teatro, deixando-me encostado em uma parede, tentando me aquecer com os braços cruzados. Ele demorou dez minutos para voltar e me resgatar do frio, levando-me para dentro de um dos mais bonitos teatros que eu já vi.
As cadeiras eram vermelhas e o teatro possuía três andares adornados com detalhes dourados. O sorriso estampado em meu rosto e o brilho em meus olhos eram visíveis do outro lado do teatro, mas minha felicidade se tornou total quando eu olhei para o palco e notei uma pequena orquestra me observando, além de um piano vago, um grupo de coral, e um maestro de cabelos brancos com um braço atrás do corpo.
Eu os observei e entrei em estado catatônico pela segunda vez no dia. Minhas mãos estavam trêmulas e meus pensamentos se embaralharam. Meu sonho era tocar em uma orquestra e ela estava ali, em minha frente. Eu, talvez, poderia pedir para eles me deixarem tocar o piano de cauda, mas eu só sabia uma música que poderia ser tocada em orquestra e, pelo visto, não ensaiava ela há um bom tempo, não sei como minhas mãos iriam se comportar. Eu não sabia nem se eu ainda era músico. Meu sorriso se desfez.
- Tá tudo bem? - Perguntou o maestro.
- Sim, eu acho.
- Vem, suba aqui no palco. - Disse ele em tom sério.
Eu subi no palco com certa vergonha e levantei a mão cumprimentando a orquestra e a dirigindo para o maestro.
- Prazer, Brendan.
Ele me olhou com um tom sério, parecendo não acreditar no que eu estava fazendo, mas acabou esticando sua mão.
- Alceo. - Nos cumprimentamos. - Você quer tocar alguma coisa conosco? Nós, pelo que parece, não temos um pianista. - Gelei.
- Eu não tenho um bom repertório, digo, acho que a única que eu poderia tocar com vocês é um Noturno que eu conheço.
- O piano é todo seu. – Disse com uma das sobrancelhas arqueadas.
Encarei o piano e um estranho relaxamento percorreu meu corpo. Caminhei até ele e passei a mão, ele era lustroso, refletindo as luzes que provinham do teto e a vontade daqueles que nos observavam. Um piano de cauda inteira, sendo tocado por mim e apreciado por aqueles que sentavam nas cadeiras da arquibancada.
Eu o contornei e sentei no banco, que estava perfeitamente posicionado para mim. Abri a tampa que protegia as teclas e iniciei as sequencias de acordes correspondentes ao Noturno em #Cm de Chopin (no.20). Obviamente, por não ter ensaiado esta música há um bom tempo, meus dedos não se moviam com muita agilidade, fazendo com que eu errasse algumas notas. O maestro me observava com atenção e depois de certo tempo tocando, ele ordenou que alguns violinistas e contrabaixistas tocassem comigo, criando uma bela e diferente harmonia.
A música repercutiu pelo teatro por quatro minutos, instalando-se o silêncio logo em seguida. Eu me levantei do piano e voltei a ficar ao lado de Elliot, observando, com alegria estampada no rosto, a orquestra e o coral a minha frente.
- Há quanto tempo você não ensaia essa música? - Perguntou-me o maestro.
- Bem. - Fiz uma pausa. - Na minha ideia de tempo, cinco dias, por quê?
- Você executou a música como alguém que está a poucos anos aprendendo piano.
- Eu sei. - Desviei o olhar. - Eu iniciei meus estudos há quatro anos.
- Entendo. - Disse o maestro, dando-me as costas.
Eu fiquei parado observado tudo em minha volta. Eu não queria esquecer aquilo, não queria esquecer aquele sentimento. O sentimento de realizar um sonho.
- Brendan. - Uma voz feminina me trouxe de volta ao teatro.
- Oi? - Indaguei, procurando a voz que me chamara.
Do meio do coral uma mulher de cabelos castanho claro, caído até o ombro, ornamentado com uma franja lateral, com olhos escuros e penetrantes, trajando uma roupa escura, adornada com um cachecol, deu alguns passos a frente e me encarou com certa apreensão no olhar, como se estivesse pensando no que seria certo fazer.
Eu a observei, e depois de algum tempo eu me toquei quem era ela. Aquela mulher, dez anos mais velha de como eu me lembrava, era uma das pessoas mais importantes para mim nos tempos de colégio e além. Ela era uma amiga, uma confidente, alguém que eu tinha o maior prazer de aguentar. E agora, depois de um ano sem vê-la direito, eu a encarava. No mesmo palco, com as mesmas pessoas, no mesmo local em que um de meus sonhos se realizou.
- Marta! - Falei em tom alto, correndo em direção a ela.
Os instrumentistas me olharam com certa dúvida na olhar, assim como os cantores que estavam logo atrás dela. Eu desviei de algumas pessoas e, quando cheguei perto de Marta, abracei-a fortemente, sentindo alguns estalos vindos de sua coluna.
- Marta, que saudade, como estás? - Disse, soltando-a.
- Eu estou bem. - Disse ela meio assustada.
- Sério, que bom te ver, que saudade. Nunca pensei que te encontraria aqui em Londres, sério, você merece o melhor.
- Ah, obrigada. - Ela desviou o olhar, chamando minha atenção para as pessoas ao redor.
Todas as pessoas do auditório me olhavam com certo pavor no olhar, de certa forma, surpresos com a conversa que eu estava iniciando. Eu não entendia o que estava acontecendo, mas desconfiava. Aqueles dez anos deviam ter mudado muita coisa em mim e naqueles que eu conhecia. Foi nesta hora que o brilho em meu olhar e o sorriso em meu rosto desapareceram.
- O que está acontecendo? - Perguntei, mirando os olhos daqueles que me olhavam.
- Você não se lembra mesmo né? – Iniciou Alceo. - Eu achei que você estava brincando, e que esta brincadeira estava indo longe demais. Mas, pelo visto, é real. Meu deus. - Ele arrumou o cabelo.
- Como assim? - Perguntei meio receoso.
- Quando eu pedi pra você ficar do lado de fora eu vim aqui falar com eles e expliquei a situação. Seu médico me pediu pra te levar nos lugares que você gostava, pra tentar te fazer lembrar de algumas coisas, utilizando a memória sensorial. Por isso te levei naquele restaurante, por isso passei pelos pontos turísticos e por isso não desmarquei este compromisso, te trazendo até aqui.
- Sim, eu já imaginava isso, mas por que todo semblante de vocês mudou quando fui falar com a Marta? - Olhei para ela.
- É porque nós não deveríamos estar trocando palavras. - Falou Marta.
- Como assim?
- Há três anos, pouco depois de nós nos encontrarmos neste palco, nós tivemos uma discussão. Uma briga bem feia. Desde então, nós não nos falamos mais. Nem uma palavra, nem um gesto, nem um olhar. E quando Elliot entrou aqui e falou o que tinha acontecido, eu, e todos aqui dentro sabíamos o que teria de ser feito. E, depois disso, ou você é um excelente ator, ou realmente sofreu uma valiosa perda. - Ela me olhava com um olhar caído, observando minhas reações e afagando o próprio braço.
- Quer dizer que eu passei um bom tempo sem falar contigo. - Eu abaixei a cabeça.
- Sim.
- E os outros, digo, as outras pessoas que eram importantes pra mim? - Virei a cabeça para Elliot, com os olhos cheios de lágrimas. Ele balançou a cabeça.
- Quando a gente se mudou pra cá, você deixou muita coisa pra trás, inclusive algumas pessoas.
Aquelas palavras foram como um soco pra mim. Eu, Brendan Cincini, uma pessoa que sempre se importou mais com os outros do que consigo próprio, havia abandonado tudo o que ele mais presava e amava, e para que? Por que motivo eu fiz tudo isso?
Meus olhos se fecharam involuntariamente e eu pude sentir as lágrimas quentes escorrerem por minha bochecha. Soluços despertaram de meu peito e a vontade de viver se esvaía de me meu corpo.
Eu caminhei até a frente do palco, sendo observado a todo instante e me virei para o maestro, limpando os resquícios líquidos de meu rosto.
- Eu era o pianista. Não é? Eu era quem ficava sentado e executava as peças neste piano. Não é?
- Sim. - Disse Alceo, abaixando sua cabeça.
- Legal. - Dei as costas. - Um sonho arrancado de minhas mãos.
As lágrimas brotaram voltaram a inundar meu rosto. Eu não queria mais ficar ali.
Dei as costas para todos e desci as escadas do palco, caminhando em direção à saída.
- Brendan, espera! - Gritou Elliot.
Continuei caminhando, sem olhar para trás, torcendo para que tudo aquilo não tivesse acontecido.
- Brendan! - Ele gritou novamente.
Eu atravessei a porta principal e me encostei em seu carro, segurando as lágrimas, esperando que Elliot saísse do Palladium.
- Brendan. - Disse ele, se pondo em minha frente. - Desculpa, não queria te magoar.
- Me leva pra casa. - Foi o que eu consegui dizer. Mas eu sabia que a casa para onde ele me levaria não era casa que eu gostaria de ir.

~X~

- Brendan, por favor, tenta se acalmar. - Pedia Elliot a cada vez que eu abria a boca.
- Me acalmar? Elliot! - O som percorreu o corredor de nosso prédio, antes de Elliot fechar a porta principal de nosso apartamento. - Eu estou em uma vida que não é minha, estou namorando uma pessoa que eu não conheço, abandonei as pessoas que eu amava, tive sonhos tirados de mim, e sou obrigado a escutar você me dizendo pra ficar calmo? - Gritei.
- Elliot, eu... - disse ele com o tom de voz baixo, olhando em meus olhos.
- Você não tem ideia do que estou sentindo. - Diminui o tom de voz. – Você não tem ideia da dor que eu estou sentindo. Me sinto culpado por tudo. Isso não está certo. Essa vida não está certa.
- Mas foi isso que você construiu. Comigo. Nós dois construímos isso.
- Quer dizer que a culpa também é sua por eu ter perdido a memória? - Falei rispidamente. - Eu não te conheço Elliot. Eu te falei isso mais cedo. Eu não consigo nem sentir vontade de te abraçar. Para mim você me foi apresentado hoje. - Uma lágrima escorreu de seu rosto. - Desculpa.
- Tudo bem. - Ele olhou para o chão. - Fome?
Balancei a cabeça de forma negativa.
- Ok, vou estar na cozinha, qualquer coisa.
Ele saiu da sala e eu ergui a cabeça. A sala era extensa, com um piso em madeira cintilante e um enorme tapete sob a mesa. As janelas percorriam toda a extensão do teto ao chão, e uma grande televisão estava pendurada em uma das paredes. Em volta, uma série de quadros enfeitava a parede, mostrando fotos de Elliot com uma pessoa. Um homem, com aparência de vinte e tantos anos, cabelo arrepiado, castanho, roupas de marca e um sorriso no rosto. Sei que eu deveria me reconhecer, mas aquele não era eu.
Eu respirei fundo, retirei aquela grande quantidade de roupa que cobria meu corpo e me sentei no sofá da sala, olhando através da janela e observando a arquitetura do prédio do outro lado da rua. Eu me sentia perdido, sozinho. Aquele mundo não me pertencia, Elliot não me pertencia, nada naquele guarda-roupa, naquela cidade, naquele país, me pertenciam. Eu estava sozinho. Jogado em um canto, sendo coberto pela poeira do mundo, enquanto meu cérebro ria de tudo, planejando o tempo da próxima perda de memória.
Meus olhos estavam inchados, completamente vermelhos, e minhas mãos tremiam sem parar. Minha respiração estava ofegante, flutuando entre apneia e hiper-ventilação. Minha mente devaneava, pensando nas pessoas que eu havia perdido, nos concertos que eu já não lembrava, nas aventuras que tive ao lado de pessoas que não conheço, nas vidas que meus antigos amigos possuíam.
Eu não queria esta vida. Eu não queria viver sem lembrar de dez anos da minha história. Não queria viver sem lembrar de meus erros, de minhas escolhas, de minhas vontades, desejos e anseios. Não queria viver pensando no que perdi, no que deixei de fazer, no que deixei de construir. Aquela vida já não era minha. E eu não fazia questão de fazê-la ser.
Caminhei até a janela e olhei para o escuro céu que cobria cidade. Uma nevasca estava tendo inicio e os moradores do prédio em frente fechavam apressadamente suas janelas. A rua estava deserta, manchada pela neve que se estendia por toda a cidade. Eu não suportaria morar aqui. Não suportaria viver uma vida que me fora tirada.
Toquei a janela, sentindo o frágil vidro que me separava da neve, ficando, logo em seguida, de costas para ele.
Elliot saiu da cozinha e parou no corredor, observando-me, enquanto amarrava um avental preto ao corpo. Eu o olhei e meus olhos voltaram a se umedecer, fazendo-me levar as mãos a eles.
- Elliot. - Disse.
- Sim? - Disse ele em tom baixo.
- Eu não tenho por que continuar aqui. Eu não tenho porque viver neste caos, sem lembranças, sem amigos, sem meus sonhos. Tudo me foi tirado, e eu vejo que faria tudo diferente se eu pudesse.
- Brendan, eu...
- Não adianta, eu não quero viver uma vida em que as pessoas que eu amava não estarão presentes. Peço desculpas, pois o verdadeiro sofrimento será seu.
- Brendan, vem... - Eu não escutei o que Elliot disse, e antes que eu pensasse demais, fechei meus olhos e joguei meu peso para trás, iniciando o estilhaçamento do vidro, seguido do som do meu nome, sendo emitido aos gritos por Elliot.
O chão não estava lá para me segurar, e assim, a queda teve inicio. Sete andares, eu teria tempo para pensar ainda. Abri meus olhos e a Terra parou de girar. Eu estava imóvel no ar, sem conseguir mexer meu corpo, sem conseguir piscar, apenas pensando. Os cacos de vidros pairavam junto comigo no ar, refletindo o brilho das lâmpadas na rua, e o rosto daqueles que observavam. Elliot era um deles. Ele estava de joelhos, próximo à janela, com o braço esticado, como se quisesse me pegar. Ele estava com lágrimas no rosto e isso me magoou. Sei que não pensei nos outros ao fazer o que fiz. Sei que fui, de certa forma, egoísta. Assim como sei que feri, para sempre, a pessoa que mais me amava neste curto ciclo de vida.

Fechei meus olhos e o vento balançou, novamente, meus cabelos. Não sei se minha ação é a certa. Não sei se o que fiz deixará sequelas permanentes no mundo. Mas eu não quero correr o risco de viver com medo do amanhã, preso em um corpo de vinte e sete anos com mentalidade de dezessete, sem aqueles que amo, errando constantemente na forma em que conduzo minha vida. Se eu pudesse eu faria tudo diferente, mantendo minhas ideias, sem ser influenciado, construindo um futuro, onde eu não viveria com remorso. Com medo de que minhas memórias se percam em meio ao preto. Chão.

Cães Lendários

O Raio
O Fogo
A Chuva

O ato
A consequência
A solução

O adorado
O compreendido
O odiado

Três cães
Eterna beleza

Criados de uma Guerra
Guardiões de duas torres

Protetores de um certo lugar
Ajudantes de um sonhos
Entendidos pelos de coração
Aqueles que atribuem à vida uma razão

A bela e a fera

Como poderia ela gostar de mim?
Como olharia para mim?
Tão anormal
Cheio de problemas
Distúrbios psicológicos

Sinto-me feio
Imprestável
Sou foco de ninguém
Quantos olhares atraí?
Quantas vontades despertei?

Envergonho-me do que sou
Mas sou assim e não há o que mudar
Então como poderá ela me notar?

Se fossemos um conto
A Bela e a Fera representaríamos
Ela a Bela
Eu a Fera
Um amor surgirá
Mas primeiro:
Onde Bela estará?

Botas

Hora de levantar
Calçar minhas botas
Embainhar minha espada
Arrumar minha capa
Endireitar meu chapéu

Há quem me chame de Misterioso
Há quem diga que eu sou débil
Alguns dizem que sou desastroso
Mas não passo de um simples gato

Honro aqueles que me respeitam
Admiro aqueles que lutam
Cada um com prazeres ocultos
Desejos adultos

Criar um pátio com rosas selvagens
Para que toda manhã eu possa sentir o aroma
Para que todo ano eu possa colhê-las
Entregá-las à quem amo

Transformar todos meus sonhos em realidade
Simples ato reflexivo
Tudo é mental
Caminhar enquanto o impossível se torna possível

Lutar contra minhas sub-personalidades
Ganhar batalhas ocultas
Mostrar o quão forte são meus guardiões
Guerreiros fiéis, eterna gratidão

Caminho pelas ruas de Carabás
Enfrento o desconhecido
Um gato destemido

Não me perco pelas rotas
Não se esqueça de meu nome
O Gato-de-Botas

O Passado