Coelho branco.

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Preto, esta era a cor dos céus, uma cor triste, sádica, a última coisa que eu veria. As nuvens andavam com pressa, algo estava chegando, algo imenso e poderoso. Elas eram pesadas, carregadas de algo que eu queria beber, mas o guardavam muito bem. Mais adiante, nuvens igualmente escuras se aproximavam, elas faziam o céu brilhar, clareavam as nuvens, clareavam minha alma, porém algo sempre atrapalhava a minha contemplação. Logo após as luzes, fortes estrondos ecoavam pelo ar, eram graves, faziam toda a terra tremer, um rugido de dor, um grito de agonia.
Algo está a soprar por entre meu corpo, algo frio, desnecessário. Meu corpo treme, minha mente devaneia, as nuvens correm. Vento ordinário, por que me faz sofrer ainda mais, já não sei quanto tempo mais viverei, não precisas apressar.
Amarelo, esta era a cor das folhas que se fixavam na árvore a minha frente, uma cor alegre, de ternura, o ultimo abraço que eu receberia. Seu tronco era antigo, uma madeira valiosa, que mostrava passagens de uma antiga geração. Tronco marrom, outra cor que me assiste morrer. As folhas eram pontiagudas, opacas, de tom chumbo graças ao céu. A cada rajada de vento, uma pequena folha se desprendia e pousava no chão, algumas ao meu lado, algumas voavam sem rumo, apenas seguindo o vento. Uma grande árvore anciã, quantos mortos ela já deve ter visto, mais um não faria diferença
Verde, cor da grama, cor da esperança, um sentimento que eu já abandonei. Grama alta, um conforto, meu ninho. O que serão de meus filhotes agora que me vou? Como poderei ajudá-los a enfrentar os perigos que nos cercam? Grama verde de esperanças, só me dá preocupação, só me dá trabalho. Sinto falta de seu cheiro ao cortá-la, sinto falta do seu gosto ao provar de seu corpo. Reclamo e agradeço a você por esta vida, me serviste de ninho, me deste alimento, me protegestes do frio e do calor, mas escondeu o mau. Esta pequena muda em minha frente, carregada de frutinhas vermelhas, ela foi testemunha do ocorrido. Espero que esta visão não a tenha traumatizado.
Vento, por que voltas para me fazer sofrer, já não basta ver-me aqui deitado, agonizando, pare de me fazer sentir frio. Sei que é o seu trabalho, carregar o pólen da vida, fazer as folhas chacoalharem, movimentar a grama, empurrar as nuvens, fazer todo o meu corpo tremer.
Branco, esta é a cor do meu corpo, cor do meu pelo, a cor que me matou. Dizem que sou bonito, inteligente, mas que este pelo aveludado um dia me mataria. O que posso fazer se meus sentidos me abandonaram? Culpada seja a grama que me faz sofrer agora, que escondeu um invasor, que pôs o meu ninho, os meus filhotes, em perigo. Não sei o que me atacou, tudo aconteceu muito rápido, só sei que já deixou esta planície, fugiu para junto dos seus. Meu corpo dói, minhas patas tremem, minhas orelhas chacoalham, meus dentes rangem, meus olhos já não focam mais e meu pelo abandona sua cor.
Meu corpo ganha um novo tom, meu pelos sofrem uma transformação, um borrão diferente, uma nova onda de dor. Vermelho, esta é o novo tom de meus pelos, dizem que é a cor do amor, para mim, é a cor da morte. Meu abdômen está aberto, o sangue sai de meus vasos e banha esta grama sagrada, sangue fedido, cheiro de ferrugem. Algo quente escorre pela minha testa, mais um ferimento, mais um foco de dor. Sangue maldito, sinto seu gosto, parece sal, gosto de ferro. Dizem que o último sentido que nos abandona é a audição, mas, por enquanto, possuo todos. Quanto tempo ainda tenho?
Nada, não há cor, então por que a associam com azul? A chuva, a água, o mar, nenhum destes possui cor. O liquido guardado finalmente se desprende das nuvens, mas eu não possuo mais vontade de provar do seu gosto. Eu deveria estar sentido ela, sentindo-a escorrer por meu corpo, lavar meus pelos, purificar meu corpo. Devia sentir seu gosto, sentir sua umidade, poder engoli-la. Devia poder sentir o seu cheiro, sentir o aroma da grama molhada, da terra úmida, de meu sangue fétido. Não possuo mais estes sentidos, finalmente, minha hora está chegando.
A grande árvore anciã tem seus galhos chacoalhados, por que fazes isto vento? Por que tem de movimentar tudo por onde passas? Uma folha se desprende da árvore, culpado seja o vento que a pôs em oscilação, ela voa sem rumo para os outros, mas eu sei onde cairá. Folha amarelada pelo tempo, folha de tom chumbo, retire de mim mais um de meus sentidos.
Não consigo movimentar meu corpo para retirar esta folha de minha cabeça, apenas minhas orelhas estão aparecendo. Quem afirmou que a audição é o ultimo sentido que nos abandona, acertou.
Trovões, vento, chuva, estas são as três coisas que escuto. Os três últimos barulhos que serão registrados pela minha mente. O ritmo de meu coração está diminuindo, o sangue está parando de pulsar, meu corpo será entregue à Terra e minha alma voltará para o Éter.
Eu queria poder ver esta dimensão pela ultima vez, ver meus filhotes antes de partir, alimentá-los, amá-los. Porém, não sinto, não degusto, não sinto aromas, não ouço. Eu estava certo, antes de minha alma abandonar este corpo, a única coisa que verei, será o preto.

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